VIDA,
MORTE E RESSURREIÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO
Essa questão é conhecida
também como o problema da retribuição individual após a morte.
1-
A VIDA
A esperança inicial de
Israel fixava os olhos dos fiéis sobre a terra, não no céu: Sl 115,16. Não há
nenhum sentimento trágico da vida. O conceito de vida é expresso com um plural
intensivo, ‘hayyim’ (חַיּיּם) que vem
a ser também felicidade; a ela pertencem a segurança, a saúde, a força e o
bem-estar. Viver é mais do que existir, pois implica uma plenitude existencial.
É o bem supremo, pelo qual o homem está disposto a dar tudo (Jó 2,4). O ideal
mais desejado é a preservação e o prolongamento da vida (Dt 5,16; 16,20;
30,19.21; Am 5,4.6.14; Ez 18,23.32; etc.). O fundamento para essa concepção não
é materialista, pois a vida é vista como dom de Deus, como parte da promessa.
Javé é o vivente por antonomásia (Dt 5,26; Sl 42,3; 84,3; Jr 10,10...), tanto
que a expressão se tornou uma fórmula de juramento (1 Sm 14,39; Jr 4,2; 12,16)
e nele está a fonte da vida (Sl 36,10; Jr 2,13; 17,13). É Javé quem outorga,
conserva e prolonga a vida, como pressuposto e parte integrante da promessa e
como comunicação de seu próprio ser vivente (Cf. apostila sobre a Trindade, “o
Deus Vivo”).
O ponto máximo da
vitalidade se alcança quando a relação homem-Deus é atuada como comunhão.
Então, o israelita pode confessar: “A tua graça vale mais do que a vida” (Sl
63,4). Em virtude disso, a existência é vida apesar de penúrias e dissabores
(Sl 22; 84,11; 119: comparar os versículos 47.92.103.165 com os
23.38.41s.61.143).
Uma existência conduzida à
margem da Aliança não é vida autêntica, mas um “invocar a morte com obras e
palavras” (Sb 1,16). Transgredir o preceito divino é experimentar a própria
condição mortal (Gn 2,17). A morte, negação da vida, é expropriação do âmbito
da relação com o Deus vivo, uma excomunhão.
2-
A MORTE, OS MORTOS, O ‘SHEOL’
A
morte é o compêndio de todos os
males, o mal por excelência. Esta característica não é esquecida nos textos
onde a morte aparece como algo natural (Gn 15,15; 25,8;35,29;49,29). Ao caráter
luminoso da vida se opõem os traços mais sombrios para descrever a morte:
amarga lembrança (Eclo 41,1) que suscita lágrimas (Eclo 22,11), noite espessa
(Sb 17,20), trevas (Sl 88,7.13), torna os homens pouca coisa (Sl 89,48), a
existência efêmera como a sombra (Jó 14,2). A morte coloca o homem numa situação
de excomunhão, pois Deus não se ocupa dos mortos (Sl 88,6,11) e estes não
louvam a Deus (Sl 6,6; 30,10; 88,11-13; 115,17; Is 38,11.18s). A morte é
situação de silêncio (Sl 31,18; 94,17; 115,17) e de esquecimento (Is 26,14; Sl
88,13; Ecl 9,5s.10), de solidão existencial.
Contudo,
Javé conserva seu poder de intervenção também em relação à morte e aos mortos.
A sua mão chega até o ‘sheol’ (Am 9,2; Sl 139, 7s; Jó 34,22), e lá pode
realizar seus prodígios (Is 7,11; Sl 135,6).
Por isso, os mortos sobrevivem.
A morte é perda da vida, mas não cessação total da existência. Então se
reduz de tal forma o dinamismo próprio do ser vivo que se pode falar do defunto
como de um não existente (Jó 7,21; Sl 39,14), sem que isso signifique uma
aniquilação do homem e nem muito menos uma imortalidade da alma. Entre esses
dois extremos situa-se a concepção hebraica dos mortos como ‘refaim’ רֽפָאִים)). Esse termo deriva provavelmente do verbo
‘rafah’ (רָפָה), ser
fraco.
O
lugar dos mortos é o ‘sheol’ שֽׁאוֹל)),
destino sem volta, reino das trevas e do pó, terra do esquecimento, onde seus
habitantes arrastam uma semi-existência umbrátil, que vale como residência
indiscriminada de todos os mortos (Jó 3,19; Ecl 2,15). O sheol é a sorte comum
para todos indistintamente (Ecl 9,3).
A
conservação de uma certa hierarquia social (Is 14,18.20; Ez 32,22-27) não
constitui uma retribuição, pois é só um reflexo póstumo da glória terrestre do
defunto. Se por outro lado o ‘sheol’ é chamado de lugar de perdição (Sl 88,12;
Jó 26,6; 28,22; 31,12), tal afirmação não contém caráter ético, mas mostra o
apreço pela vida e a negatividade da morte.
Tais
concepções, comuns a outros povos, não podiam satisfazer a Israel. A comunhão
vital do homem com Deus, não pede uma continuidade, mesmo após a morte? Como o
Deus da Aliança retribui o bem e o mal, a fidelidade e a infidelidade? Para
responder a essas questões Israel deverá modificar totalmente sua concepção
sobre a morte e o sheol.
3-
RETRIBUIÇÃO: A TESE TRADICIONAL
As
ações boas e más recebem de Javé a devida retribuição: Adão é punido por seu
pecado, Noé é salvo por sua inocência, a fé de Abraão merece um prêmio, a
corrupção de Sodoma merece castigo, e assim por diante. Todavia, prêmios e
castigos são temporais.
Tal
retribuição é claramente solidária,
envolvendo outros nos méritos ou deméritos dos indivíduos (Gn 7,1.13; 12,3;
19,12-16; Nm 16; Js 7; 1Sm 2,27-36; 2Sm 24, 1-17). Deus sanciona o bem e o mal
com prêmios ou castigos terrenos e coletivos. O objeto da eleição divina é o
povo como tal (Dt 7,6-8) e com o povo Deus fez aliança (Ex 19, 3-8; 24, 3-8);
assim, é o povo o sujeito da retribuição, o mediador entre o indivíduo e a justiça distributiva de
Javé.; o indivíduo é alcançado pela justiça em razão de sua pertença à
comunidade da aliança. Em Dt 28 o
princípio da solidariedade está codificado (cfr Jr 31,29; Ez 18,2).
Tal solução estava longe
de ser satisfatória (Jr 17,10; 31,30). O oráculo sobre a nova aliança tem seu
centro de gravidade à inscrição da Lei no coração de cada homem (Jr 31,31-34). Mas é em Ezequiel que lemos a chamada
mais incisiva para a responsabilidade dos indivíduos e para a religiosidade
pessoal. A situação presente não é devida às culpas dos antepassados, mas aos
pecados pessoais dos contemporâneos (Ez 18, 1-24.29; 20,30). Cada um será
julgado segundo seu proceder individual, mas a perspectiva dos prêmios e
castigos continua sendo temporal (28,24-26; 33,25-29).
O livro dos Provérbios mantém a versão da
retribuição temporal e individual (1,23-32; 3, 9s.16-18; 4,13; 7,2.24-27;
8,18-21; 9,6; 24,20). É a linha de
vários salmos: 1; 91; 112; 128.
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