domingo, 28 de fevereiro de 2016

MULHER APOCALÍPTICA: UM TEXTO BÍBLICO DE TRANSIÇÃO

A MULHER APOCALÍPTICA: UM TEXTO BÍBLICO DE TRANSIÇÃO

O significado da mulher que aparece em Ap 12 é controvertido. Alguns optaram por ver nela uma imagem da Igreja, outros de Maria.
Embora no Apocalipse não se mencione Maria, aparece com freqüência o termo “mulher” com significado positivo e negativo: a mulher que dá vida e a mulher prostituta. No capítulo 12, refere-se à mulher mãe do Messias. No capítulo 17, à grande prostituta.
1. O sinal da mulher que dá a luz
O capítulo 12 está situado no septenário das sete trombetas e no que poderíamos chamar “ramificações da sétima trombeta” (Ap 11,15-15,8).
Ressoa a sétima trombeta, que conclui o anúncio da chegada do reino. E o Reino chega sobre o monte de Sião acompanhado de símbolos no céu, de imagens bestiais que lutam contra imagens angélicas. Um sinal de grande importância é o daquele que no mostra uma mulher que vai dar a luz. Evocamos o sinal que propõe Is 7: uma virgem que vai dar a luz.

2. O símbolo da mulher e do dragão
a) Contexto mítico
Segundo a mentalidade mítica, o céu e a terra formavam uma unidade primigenia que no processo cosmogônico o deus Cronos destruiu violentamente. Embora Céu (Urano) e Terra (Gaia) apareceram separados, estão chamados a uma estranha unidade. Amam-se, e de seu amor durante a noite nasce cada dia o Oceano, o Sol. Ordinariamente o céu se entende com masculino e a terra como feminino. A vida na terra surge da separação de céu e terra.
Também na Bíblia se faz eco, não de forma clara, desta mentalidade. Para o tempo se espera a reunificação de céu e terra.
Esta grande reunificação é sinalizada no simeion de Ap 12,1. Aqui se inicia o drama escatológico, a partir do qual se eliminará a distancia entre céu e terra e a separação entre Deus e o homem. Tudo isso se produzirá através de uma mulher.
b) As características da mulher            
Sol, lua e estrelas eram atributos das divindades celestiais. O vestido expressa sua personalidade; indica como este personagem deve olhado pelo resto do mundo. Para os gregos e romanos, o sol é “pantokrator”, alma do cosmo, energia, luz do cosmo. O vestido da Mulher significa que está assimilada ao princípio divino, unida a Deus.
Sob seus pés está a lua. Esta era personificada como feminino e associada com as funções femininas. Na mitologia popular, a lua era contemplada como a esposa de Hélio. Esta é a perspectiva de Ap 12. A mulher está unida ao divino e em sua pessoa, que está sobre a lua, o sol e a lua são unidos em um matrimônio sagrado cósmico. A imagem remete à festa do matrimônio escatológico do fim do Apocalipse.
A mulher está coroada e a coroa está formada por doze estrelas. Ap se refere às doze tribos de Israel e aos doze apóstolos.        
Se nos situamos no âmbito da astrologia, é provável que qualquer grego ou romano que lesse esta descrição da mulher apocalíptica, pensaria na constelação Virgo, o sexto signo do zodíaco. É representado como uma mulher que leva uma espiga de trigo e tem asas. A Virgo deixou o mundo quando começou a proliferar o mal e o pecado. Esperava-se o seu retorno no tempo final, na idade do ouro. Segundo a mitologia greco-romana, o retorno da Virgo era o sinal de que “o fim está próximo”. Isto é o que Ap 12 indica. O signo de Virgo aparece no céu.
Virgo no uso religioso greco-romano podia se referir a qualquer das deusas virgens: Deméter, Juno, Isis, Artagatis, Celeste e Afrodite.
Contudo, esta mulher, para o autor cristão, não é uma deusa, mas a mãe do Messias.
c) A mulher que dá à luz
A mulher está grávida. Quem nasce não é um povo, porém o Messias. A mulher é mãe. Seu filho é o resultado da união do céu e da terra. Neste nascimento se restabelece a unidade primordial entre céu e terra.
O vidente apocalíptico nos fala do nascimento-exaltação do Messias. Contudo, este nascimento, embora faça referência à história, acontece em um marco cósmico, transcendente, exemplar. O menino é uma figura transcendente, aparentada com as forças cósmicas, que entra em contato episódico com este mundo.
d) A outra mulher: a prostituta (Ap 17)
Outra visão de uma mulher cujas vestes expressam sua identidade: a grande prostituta – a grande cidade, Roma. Porém, há elementos que fazem pensar em uma deusa pagã.
A associação desta mulher do Apocalipse com uma cidade evoca o tipo de associação com as deusas pagãs. Estas deusas eram muitas vezes protetoras das cidades e identificadas com o “gênio” de uma cidade particular. A cidade é como uma mulher que engendra, alimenta e protege a seus filhos. A cidade é mulher em sentido simbólico. Em Ap 17 a grande prostituta está associada a uma entidade pecadora, Babilônia, que está em contraste com a nova cidade, a Jerusalém que vem do alto, de Deus, como uma noiva adornada para seu esposo. A cidade como a grande prostituta representa o caos, a nova cidade é o lugar santo em que o caos é superado e conquistado. Esta mulher poderia ser Cibele. Para o apocalíptico, está associado a todas as forças demoníacas, era Babilônia, a cidade que faz nascer, alimenta e protege a todas as forças e atividades e inimigas do governo de Deus.
A rainha prostituta e a rainha do céu são pólos irreconciliáveis: uma está em aliança com os elementos do caos, a outra se opõe a eles. O íeros gamos de uma é fornicação, o da outra é a consumação da união escatológica entre o céu e a terra.
e) Interpretação cultural
Texto apocalíptico utiliza símbolos de grande densidade e significado universal: imagens do princípio e do fim, a separação do céu e da terra, do masculino e feminino e sua eventual reintegração e unificação. A mulher representa tudo o que Celeste significava para os habitantes de Cartago, a Dea Syria para seus devotos em Hierápolis, a Grande Mãe dos deuses para Juliano o Apóstata. Ela é o aspecto feminino do grande mistério chamado Deus.
Em Ap 12 deve-se ver a figura de uma mulher e não uma alegoria como a Sinagoga ou a Igreja. É a rainha do céu, Maria, a quem chamarão “Mãe de Deus”.
3. Primeiras interpretações cristãs da mulher vestida de sol
Hipólito, bispo de Roma (+ 235), foi o primeiro que abordou este tema. Interpreta a mulher como uma figura da Igreja que possui a palavra de Deus cujo brilho supera o sol. Metódio, bispo mártir de Tiro na Fenícia (+ 312): a mulher é o sinal da Igreja. O Apocalipse fala do presente e do futuro, não do passado, portanto, não fala de Jesus. Epifânio (+ 403), referindo-se a Ap 12,4 diz que este texto pode cumprir-se em Maria, porém não está seguro desta interpretação. Provavelmente foi o primeiro autor que identificou a mulher com Maria.
A interpretação mariológica de Ap 12 não é muito antiga na Igreja cristã. Foi Ecumênio, no século VI, quem a identificou. Os demais autores a identificam com a Igreja. Desde o 400, cristianismo e paganismo eram competidores, e nesta batalha o cristianismo não podia adotar a terminologia pagã. A mulher do Ap 12 não podia ser chamada Maria. Era a Igreja, e a Igreja estava associada a Maria. Quando o cristianismo venceu o paganismo e desde que, no Concílio de Éfeso (431), foi proclamada Maria como Theotokos, as dificuldades foram superadas.



4. As duas mulheres: capítulos 12 e 17 do Apocalipse
Compreende-se quem é a Mulher do capítulo 12 do Apocalipse quando confrontada com a Mulher, amiga do Dragão e de sua Fera, do capítulo 17.
A Mariologia apocalíptica situa Maria em um campo de forças, no meio da batalha escatológica que ainda hoje está se libertando. A Mariologia apocalíptica se converte em Eclesiologia apocalíptica. Em paradigma para um novo modelo de Igreja, menos cúmplice, mais profética e denunciadora. Maria do Apocalipse é aquela Mulher que nos faz compreender a inconsistência de todos os impérios, que nos sentir como o Mal é tão débil que a inocência e a docilidade angélica da vontade do que está sentado no Trono é capaz de abater em só instante.

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