A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
A
profissão de fé inicia-se com o “creio” e conclui com o “espero a ressurreição
dos mortos”, eco amplificado do “ressuscitou dentre os mortos”, artigo da parte
central do Credo. Como ponte entre os dois o “virá com glória” que estudamos no
capítulo anterior. A Páscoa do Senhor e da criação é agora a Páscoa da
ressurreição dos mortos.
1- O
Novo Testamento
No tempo de Jesus a fé na ressurreição, aquisição
recente, ainda era objeto de disputas entre fariseus e saduceus: At 23,6-8;
24,14s.
Também o ensinamento de
Jesus se dá em um contexto polêmico: Mc 12,18-27. Jesus argumenta a partir da
Escritura (Ex 3,6) e da concepção que uma vida verdadeira deve ser uma vida
encarnada. A ressurreição é afirmada também na geena: Mc 9, 43-47. Em Mt 12,41s
// Lc 11,31s temos um aceno à ressurreição (verbos ‘anistemi’ e ‘egeiro’)?
No quarto evangelho as
referências são mais densas e freqüentes. Jo 11,24 manifesta a ressurreição
como fé do povo. 5,28s declara a ressurreição um fato universal, como
ressurreição para a vida ou para o juízo (cfr At 24, 15). Jesus mesmo é a
ressurreição e a vida (11, 25) e os que acolhem sua palavra viverão (5,25). Ser
ressuscitado no último dia equivale a ‘não perder-se’, viver’, ‘ter a vida
eterna’ (6, 39.40.44.54). Ressuscitar para a vida é resultado da participação
da vida do Ressuscitado, comendo seu corpo e bebendo seu sangue (6,54). Assim,
a crença comum na ressurreição recebe seu acabamento na motivação cristológica.
A vida do Cristo ressuscitado, atualmente presente e operante nos fiéis, embora
de maneira oculta, emerge como ressurreição final dos mortos.
Das cartas paulinas podemos destacar três textos.
1Ts
4,13-17. Aos
tessalonicenses, preocupados com a sorte de seus parentes mortos depois da
conversão, mas antes da Parusia julgada iminente, Paulo testemunha a certeza da
participação de todos na vida plena de Cristo. Assim, estar aqui na terra no
momento da Parusia não proporciona vantagens especiais. Todos irão participar
solidariamente e simultaneamente da glória da Parusia. A vontade divina de
ressuscitar Jesus engloba todos os que estão nele.
1Co
15. Na comunidade de
Corinto alimentava-se, ao que parece, dois tipos de erros: alguns negavam
simplesmente a ressurreição, atendo-se ainda a admitir só a imortalidade da
alma, outros a reduziam a uma realização puramente espiritual, já presente (como em 2Tm 2,18), especialmente na
experiência dos carismas extraordinários.
Frente a isso, Paulo
afirma: a) o caráter escatológico-futuro da ressurreição (v.20-28), b) a índole
somática da existência ressuscitada (v.35-44), c) o cristocentrismo do fato
(v.20s.45-49). Tudo isso para deixar claro que ou há ressurreição, ou não há
salvação; e para que seja coerente a confissão da fidelidade de Deus às suas
promessas.
a) A ressurreição é
futura: por enquanto só Cristo ressuscitou, mas para que nós possamos
ressuscitar quando a morte for abolida por ocasião da Parusia.
b) A ressurreição implica
um corpo real, embora diferente do que temos agora, pela exclusão de tudo o que
é negativo na existência presente. O corpo então será ‘espiritual’,
‘pneumático’, pura expressão do Espírito que dá
vida; trata-se de uma transformação de toda a pessoa. A fé na
ressurreição implica uma dialética entre continuidade e ruptura, identidade e
mutação qualitativa. O sujeito da existência ressuscitada é o mesmo sujeito de
antes (v.53s: τουτο), mas não está do mesmo jeito, passou por uma transformação
profunda e total dentro da mesma identidade pessoal.
c) O fundamento da
ressurreição dos mortos é a ressurreição
de Cristo. Os mortos ressuscitam porque
Cristo ressuscitou, e Cristo ressuscitou exatamente para que os mortos pudessem
ressuscitar. Cristo, causa eficiente da ressurreição, é também a causa
exemplar: reproduzimos a partir dele o seu modo de ser ressuscitado. A
ressurreição nos dá o último traço de uma processo existencial de contínua
assimilação, conformação e transformação para,
em, com Cristo. 1 Co 6 acrescenta mais um elemento: ressuscitamos como
membros do corpo de Cristo ressuscitado (v.14s). A ressurreição tem um caráter
corporativo, e não só corpóreo, constituindo a consumação do próprio Cristo.
Sujeito da ressurreição é o corpo inteiro de Cristo, cabeça e membros. Só
quando a humanidade ressuscitar Cristo estará completo.
2
Co 5, 1-5. Este texto
confirma o exposto até agora. Paulo não adere a uma concepção desencarnada da
salvação: o bem supremo não consiste em despojar-se do corpo. Seremos
sobrevestidos e não desvestidos, sendo que o mortal é absorvido pela vida, não
excluído. A esperança cristã mira à transformação do corpo, não à supressão
libertadora dele.
* * *
Recapitulando: a
ressurreição, para o Novo Testamento, é
- salvação do homem
inteiro, não só da alma, salvação desencarnada;
- salvação da comunidade
inteira, não só de indivíduos, salvação privatizada;
- salvação da criação
inteira, não só do gênero humano, salvação desmundanizada.
A ressurreição no Novo
Testamento é uma abreviação da salvação consumada. A ressurreição, como evento
biológico que reanima um cadáver e o faz voltar à vida de antes, não
interessava à fé cristã primitiva. A expectativa de uma Parusia iminente não só
não excluía, como incluía a esperança de uma transformação do corpo, mesmo
entre os que então estariam vivos. A esperança da Parusia compreendia a fé numa
ressurreição qual evento eclesiológico articulado comunitariamente,
cristificação de uma humanidade inserida na realidade mundana inteira.
2-
Doutrina dos Padres e símbolos de fé
Os
Padres tiveram que combater em dois frontes: contra a heterodoxia (docetismo,
gnosticismo) e contra o paganismo, ao qual a idéia da ressurreição soava
impossível e repugnante. São dois os aspectos da disputa: o fato mesmo da
ressurreição e a identidade e consistência do corpo ressuscitado.
Os
apologistas usam o seguinte
argumento: não se pode negar o possível em nome do real; o que hoje é real não
o foi no passado e pôde então parecer impossível; a aparente impossibilidade de
um fato pode ser desmentida pela onipotência divina. É assim que do sêmen nasce
incompreensivelmente o ser humano (Justino).
Os
apologistas entendem a identidade do corpo ressuscitado como identidade da
matéria corporal atual, que Deus convoca de novo para reconstituir o corpo tal
qual era.
Eles
se opõem terminantemente às idéias que circulavam então sobre a metempsicose ou
transmigração das almas. Insistem na unidade do ser humano como corpo e alma,
reabilitando o corporal frente à comum desvalorização. Essa dupla preocupação
levou a uma defesa vigorosa da identidade corporal de ma maneira demasiadamente
simplista.
Especialmente
Irineu e Tertuliano combateram o gnosticismo
ao ensinar que o objetivo da encarnação do Verbo foi precisamente a
salvação da carne; se não fosse para esse fim, não haveria porquê o Verbo se
encarnar. A ressurreição é possível para a onipotência divina, para a qual foi
possível tirar o homem do limo da terra, pois foi mais difícil criar do que
será difícil restabelecer o criado. Segundo Tertuliano, ao criar o primeiro
homem Deus já previa a encarnação. Se Deus tivesse garantido somente a
imortalidade da alma, teria deixado a salvação pela metade, teria salvado
somente parte do homem. Toda a economia sacramental tem um caráter encarnado;
portanto, “não pode ser separado no prêmio o que foi unido pela obra da
salvação”.
Orígenes se mostra crítico em relação
aos apologistas. Ele considera insatisfatória a idéia de uma identidade
material entre o corpo presente e o
futuro. Afirma que Deus ressuscita o corpo como corpo espiritual, não a
carne (termo que designa a condição frágil presente). A identidade do corpo não
pode se basear na identidade da mesma matéria, posto que nem sequer na
existência terrena se dá tal continuidade: a nossa substância carnal de hoje
não é a mesma de anos atrás. O que garante a identidade é a permanência da
mesma figura (ειδος : será esta a estrutura interna pela qual identificamos um corpo
como corpo humano?), não da mesma forma (μορφή: trata-se aqui da unidade das
características materiais de um corpo individual?) e nem da mesma figura
externa (σχήμα: será esta a aparência externa que muda com o tempo?).
Contudo,
Orígenes resvalou em outros aspectos da doutrina da ressurreição, ao propor um
corpo de tal forma espiritual, que não se torna mais objeto dos sentidos: é
invisível, intangível, sem peso, etc.
A fé da Igreja na ressurreição é
expressa nos símbolos mais antigos e nas profissões de fé dos concílios
provinciais e ecumênicos. Esses inúmeros textos acompanham a fé eclesial com
várias indicações mais precisas: A ressurreição é um fato:
escatológico,
se dá no último dia;
universal,
pois interessa a todos, não só os justos (sem com isso se pronunciar sobre a
última geração por ocasião da Parusia);
que
diz respeito à identidade somática, pois todos ressuscitarão com seus corpos: “nesta carne na
qual agora vivemos” (DS 72).
Em
especial, o concílio de Toledo XI (DS 540) afirma uma identidade numérica, não
só específica, isto é, a continuidade do corpo individual, não simplesmente a
ressurreição com um corpo humano qualquer.
Todavia,
a fé não indica o que é necessário para que haja identidade numérica.
Cfr. DS 2. 10. 72. 76.190.200.462.
540.797. 801.859.1002; LG 48.
3.-
Reflexões teológicas
Perspectiva
antropológica: A fé na ressurreição é coerente com a
visão unitária e não dualista do ser humano. O corpo faz parte integrante da
identidade da pessoa. Deus criador quis o homem como homem, e não lhe deu um
corpo somente para a fase que seria da formação do espírito, terminada a qual,
o mero meio é dispensado. O Deus criador
quis o homem como valor absoluto e para sempre.
Daí
deriva o fato que também os ímpios ressuscitam, embora não pela ação do
Espírito, mas pela comum ação criadora de Deus. O ato criativo de Deus é um ato
eterno, mas que assume para nós no tempo a modalidade da ressurreição quando
chega o último dia. Esse único ato tem efeito diferente, conforme a pessoa seja
habitada e vivificada pelo Espírito ou não.
Perspectiva
teológica: A
ressurreição é o cumprimento definitivo de toda a história da Aliança que Deus
livremente quis selar com a humanidade. Deus não é simplesmente “Aquele que nos
tirou do Egito”, mas o “Deus que ressuscitou seu Filho dos mortos”.
A
fé na ressurreição não surgiu da pulsão psicológica de sobreviver, nem do
instinto biológico de conservação; tais anseios deram lugar à idéia da
imortalidade como negação da morte, não como afirmação da fidelidade de Deus
que vence a morte.
Perspectiva
cristológica: Deus
nos ressuscita porque ressuscitou Cristo como cabeça.
Deus ressuscitou o Cristo para nos
poder ressuscitar como seu corpo.
Deus nos dá o Espírito que ressuscitou
Jesus para que realize em nós o que já realizou no Filho.
Em Cristo já ressuscitamos (Ef 2,6),
pois temos o penhor do Espírito que inicia e antecipa na vida presente o que é
próprio da futura. Jesus ressuscitou para ser o pioneiro que nos abre o
caminho.
Já agora o nosso espaço foi invadido
pela ressurreição de Cristo (Gl 2,20), a nossa fragilidade está envolvida pela
sua força.
As propriedades do corpo ressuscitado
são aquelas que Jesus manifestou após a sua ressurreição.
Jesus foi o único que venceu a morte:
ele nos convence desse modo que vencerá a morte em cada um de nós.
A ressurreição no último dia é a
expressão da solidariedade do corpo inteiro de Cristo.
O
problema da identidade corporal.
A compreensão desta
questão depende da concepção prévia sobre o que se entende por corpo: o que é o
corpo, e de que modo ele é meu?
Como já ensinava Orígenes,
a ressurreição não pode ser a restituição da mesma matéria bruta que pertenceu
à pessoa durante a existência terrena. Não se trata de uma recuperação do
cadáver.
Temos
que pleitear uma identidade numérica formal, não material. Essa visão só é
possível tendo presente como espírito e matéria entram na formação da
identidade pessoal de cada um. A matéria se torna corpo humano ao ser apropriada, estruturada e
configurada pela alma. Assim, para usar uma comparação, o mesmo alimento
ingerido igualmente por várias pessoas, é assimilado segundo a estrutura vital
própria de cada indivíduo. O corpo é sempre o meu e o mesmo, pois toda e
qualquer matéria entra na composição dele pela ação configurante exercida pela
alma. Por quanto a matéria cresça, diminua ou é transformada, faz parte do meu
único corpo com sua figura inconfundível.
Tendo
isso presente, quaisquer que sejam as condições requeridas para que uma porção
de matéria seja meu corpo, tais condições se cumprem na ressurreição. Sem cair
em fáceis concordismos, poderia a ressurreição se dar refazendo o corpo
individual com base simplesmente em uma seqüência de DNA.
Qual
o novo sentido do corpo
ressuscitado? O que Deus pretende com o novo dom criador?
Ressuscitar
com o corpo significa recobrar a própria vida em todas as suas dimensões
autenticamente humanas, sem nada perder do que agora constitui cada pessoa e a
torna singular.
A
individualidade irrepetível de cada pessoa é significada, expressa e comunicada
através do corpo, com seus gestos, expressões faciais, posturas e sobretudo
pela palavra. Na vida presente, contudo, tal comunicação nunca é
suficientemente clara e sem ambigüidades.Usamos máscaras, disfarces, nos
esmeramos na arte da dissimulação, por desconfiança, insegurança, por
conveniência ou por necessidade de defesa. Além disso, a pessoa nunca é
inteiramente ela mesma, estando sempre em formação, podendo o provisório,
passageiro e parcial ser entendido ou apresentado como definitivo e plenamente
pessoal.
Ressuscitar
significa então não só ter um corpo vivo e perfeito, mas bem mais um corpo
capaz de realizar e comunicar o que cada pessoa, já terminada a sua formação,
realmente é. Esse corpo será então mais meu do que nunca, supremamente comunicativo do meu eu
verdadeiro. No corpo pneumático o eu irradia a vida do Espírito, livre de
automatismos inconscientes vivendo a plenitude integral, que nasce do núcleo
mais íntimo da pessoa e alcança e transfigura a corporeidade. Supera-se a
antinomia entre ser e parecer. A diversidade do corpo ressuscitado, em relação
ao corpo terrestre, consiste em adquirir a última e irrevogável identidade.
Dá-se então a integração na pessoa de todas as dimensões da natureza, a
personalização plena.
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