sábado, 27 de fevereiro de 2016

PARA UMA TEOLOGIA DA PARUSIA

PARA UMA TEOLOGIA DA PARUSIA

            A teologia tem se esforçado por preencher o vazio da reflexão escatológica, sem a qual a compreensão da revelação ficaria truncada e desprovida do acabamento que tudo ilumina.

1- Parusia e fim da história

            O devir histórico é um processo limitado, não indefinido nem interminável. Há um ponto-alfa (a criação) e um ponto-ómega (a consumação na Parusia). Essa concepção bíblica é absolutamente nova, vencendo a concepção cíclica dos antigos. O futuro só tem sentido pleno nessa concepção, de outra forma haveria uma perpetuação do presente ou mesmo do passado. Assim, a gênese no tempo termina num parto, pois somente a eclosão do gestado justifica o tempo de gestação. A Parusia encerra a história, a conclui consumando-a, constitui o ‘dies natalis’ de uma realidade globalmente transfigurada. Desse modo a Parusia representa  a justificação do tempo histórico e o esclarecimento de seu significado. Ela constitui o fim na dupla acepção da palavra: é o término e a finalidade de todo o processo.

            Todavia, há interpretações teológicas que se limitam a considerar o aspecto da finalidade.
Mais do que um acontecimento, a Parusia seria um momento estrutural da existência do fiel. Desse modo o fato é separado do sentido, o acontecimento, da interpretação. Essa é a visão presente nos modelos de Dodd e Bultmann.Para o primeiro a Parusia cumpriria a função de representar no plano coletivo o que é real no plano individual: o encontro da pessoa com Deus no término de sua existência. Bultmann pretende manter só o que é válido no núcleo escatológico: a contínua iminência da crise que a palavra de Deus provoca no homem convidando-o à decisão.
            Do lado católico G.Greshake propôs algo semelhante. Dentro de uma história como processo indefinido, a consumação escatológica teria lugar na morte e ressurreição de cada ser humano, que levaria consigo um fragmento do mundo e da história; desse modo, o reino de Deus vai se tornando extensivo à toda a realidade criada. Temos assim uma consumação sem que haja um término.
            Também segundo G.Lohfink a Parusia se dá na morte de cada pessoa. O caráter terminal da Parusia seria mero resíduo mítico da apocalíptica, e portanto um elemento não vinculante.

            O que pensar dessas interpretações?
Em primeiro lugar, não se vê como uma quantidade ilimitada a parte post (na escatologia) possa ser limitada a parte ante (a criação).
Em segundo lugar, a escatologia tem relação essencial ao tempo. Com o pretexto da modernidade, realiza-se uma privatização do ‘éschaton’ e acaba-se por se perder a dimensão crítico-liberadora inerente à mensagem escatológica.
Em terceiro lugar, a liquidação da Parusia como acontecimento implicaria também uma negação da verdade real e objetiva da ressurreição de Cristo. O realismo da encarnação e da ressurreição impõem o realismo da Parusia.
Enfim, afirmar o fim da história não significa afirmar o fim do mundo numa espécie de catástrofe cósmica. Por isso, tentar um concordismo entre o realismo da Parusia e certas sugestões provenientes da especulação científica ou mesmo da ficção científica (a lei da entropia, a possibilidade de uma conflagração atômica, etc.) não é postura autenticamente teológica. Não é um eventual fim do mundo (por envelhecimento, consumição ou catástrofe) que vai precipitar a Parusia; é a Parusia que vai por um término ao mundo, não por destruição, mas por consumação.





2- Parusia e páscoa da criação

Os termos bíblicos ‘apocalipse’-revelação, manifestação e ‘epifania’-aparição, acentuam sem dúvida o aspecto da continuidade entre mundo presente e futuro, que  na Parusia realiza um desvelamento ou descobrimento do que já estava presente de modo oculto. Daí que o Novo Testamento não fala de retorno ou volta de Cristo, pois ele já está presente entre os discípulos. Não há propriamente duas vindas, mas uma só, a encarnação. O que há é uma distribuição dessa única vinda em três fases: o Filho que assume a condição de servo numa existência histórica; a entronização do Servo como Senhor glorioso; enfim, o desvelamento da presença real, porém incógnita, de modo que seja evidente para todos, não só para os que se apóiam na fé.

Contudo, o acontecimento que encerra a história trás consigo um coeficiente de uma novidade desconhecida até então, algo que ainda não aconteceu. De fato, a Escritura fala de ressurreição, de vida eterna, de nova criação, de transformação cósmica. Tais acontecimentos não são independentes uns dos outros, pois a célula geradora do inteiro ‘éschaton’, com todos os seus elementos, é a Parusia, isto é, a revelação da realeza de Cristo por um lado, e a consumação de sua obra, por outro. Então será comunicada a toda a realidade a ressurreição já realizada na humanidade de Jesus, aquele que é invocado no ‘maranathá’. A Parusia é assim a páscoa da criação, superação da defasagem ainda presente entre Cristo e a sua obra. Por esse lado, a Parusia, mais do que a vinda de Cristo a este mundo, é a ida deste mundo rumo à forma de existência própria do Cristo ressuscitado, conforme a promessa garantida pela ressurreição, que em Cristo se realizou em vista de nós.


O destino cristológico estava incrustado na criação desde sua origem; agora se cumpre como emergência das pulsões injetadas no interior da realidade pela Páscoa de seu Senhor, e não pela recurso externo de um decreto administrativo, a dar um desfecho ao teatro do mundo no estilo de um faustoso fim de festa. Cristo é o ‘éschaton’, não tem um ‘éschaton’. Somos nós e o mundo a termos um ‘éschaton’, não ele. Cristo não está separado do ‘éschaton’, nem deve chegar a ele. Ele não tem um futuro próprio, nós somos seu futuro ainda pendente.  A rigor, a Parusia não trás para Jesus nada que ele já não tenha por sua páscoa, a não ser o fato de ele se completar em nós enquanto glorificados com e por ele.

3- Parusia e práxis cristã

            Uma Igreja que não se sente – mesmo que o saiba teoricamente – a comunidade dos que esperam a vinda do Senhor, será tentada de se instalar no mundo o mais comodamente possível, compactuando com o poder estabelecido, tornando-se ela também uma estrutura de poder. A uma crescente desatenção em relação ao futuro escatológico corresponde um interesse crescente pelo futuro intra-histórico.
            Situamos aqui o papel dos sinais da Parusia apresentados no NT: o esfriamento da fé (Lc 18,8), a aparição do anti-Cristo (2 Ts 2, 1ss; 1 Jo 2, 18-22; 4, 1-4; 2 Jo 7-9), a pregação do evangelho a todas as nações (Mt 24,24) e a conversão de Israel (Rm 11,25ss).  Entender esses sinais como indicações cronológicas e descritivas do futuro tem sido uma tentação constante.  Todavia, toda e qualquer época poderia rastrear em sua experiência a presença desses sinais. De fato, já estamos na época escatológica. Esses sinais, devidamente interpretados, alimentam a verdadeira esperança escatológica, pois, longe de subministrar falsas seguranças  e expectativas espetaculares, promotoras de um distanciamento da responsabilidade histórica,  reativam e liberam as energias dos crentes para enfrentar a gravidade da hora presente.
           
            O cristão movido pela esperança deve atuar na direção daquilo que espera. Esperar a Parusia é crer que Cristo venceu a injustiça, a dor, o pecado e a morte; não pode haver então uma resignação passiva diante da persistente emergência desses fenômenos, que perderam seu direito de assolar a humanidade. Dar testemunho da ressurreição de Cristo significa torná-la veraz usando sua força contra o domínio arrogante da morte. O Reino anunciado chega na medida que os fiéis realizam o que é próprio do Reino, porque sabem que já dispõem da vitória de Cristo. A vida cristã se fortifica com a própria estrutura do sacramento que a instaura e acompanha, fazendo das ações e comportamentos cristãos os sinais eficazes do reinado de Cristo.
            2 Pd 3,11s: “Se todo este mundo está fadado a desfazer-se assim, qual não deve ser a santidade do vosso viver e da vossa piedade, enquanto esperais (πρσδοκώντας ) e apressais (σπεύδοντας : também no sentido de anelar intensamente)  a vinda do Dia de Deus...”. Segundo este texto, esperar a Parusia é fazer tudo para que chegue, é fazer tudo para antecipá-la. Esperar é operar.
Entre os fariseus, a observância da Lei de Moisés apressava a vinda do Messias, e os pecadores a retardavam. Para os cristãos, Jesus iniciou o Reino para que chegasse à consumação através da oração que comprova, no aproveitamento daquilo que Jesus já iniciou, a verdade de uma vontade que realmente quer aquilo que pede: um Reino que será consumado pela Parusia, mas que é uma resposta a uma prece feita com a vida. Assim como o Verbo se encarnou respondendo à oração cheia de esperança daquela que era imaculada para ser capaz de orar à altura do dom, assim também Jesus se manifestará na glória de seu Reino pela prece de uma esposa, a Igreja, que na ação mostra que quer deveras o que pede como graça na oração. “Quando o Filho do Homem vier, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Uma oração feita pelo Espírito, dom do Cristo ressuscitado, garantia da futura ressurreição da humanidade: “O Espírito e a Esposa dizem: vem!” (Ap 22,17).



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