segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A ESCATOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

A ESCATOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO


1 – A PRESENÇA DO REINO EM JESUS DE NAZARÉ

            João Batista ainda atua como um profeta da expectativa do Antigo Testamento, ao anunciar a iminência do juízo escatológico (Mt 3, 1-12; Mc 1,2-8; Lc 3,1-18).
            Com Jesus tudo muda: ele é mais do que o Batista (Mt 11,11), mais do que Jonas (Mt 12,41), mais do que Moisés (Mt 5,21), mais do que Salomão (Mt 12,42), mais do que o Templo ou o sábado (Mt 12, 6.8). Nesse mais já é perceptível uma nítida vibração escatológica. Jesus ultrapassa o umbral da expectativa e se situa na esfera do cumprimento (Mt 5,17; Mc 1,15; Lc 4,21).
            A pregação de Jesus se polariza em volta do tema do reino, e se esse é seu tema por excelência, é porque se trata de algo já atual, é o agora da presença física e tangível de Jesus. Pregação, milagres, curas, exorcismos, o perdão concedido e não só anunciado, são a demonstração inequívoca da presença do Reino e de sua natureza salvífica (Mt 11,5; Lc 10,18; 11,20;17,20s).  A comunidade dos doze discípulos inaugura a comunidade escatológica das doze tribos, antecipa a plenitude final do povo da aliança. As refeições de Jesus constituem o símbolo e a realização inicial do banquete messiânico, anúncio que o tempo da salvação já irrompeu.

            Segundo uma escola teológica, denominada da escatologia conseqüente (A.Schweitzer), Jesus teria assumido as representações apocalípticas do tempo final que ele teria esperado para um futuro próximo. Com a crise pela não realização do Reino, Jesus assume a figura do Filho do Homem, cuja ressurreição seria a condição prévia para a instauração do Reino. Mas não é o que acontece, e então os discípulos interpretam Pentecostes como cumprimento das profecias messiânicas, isto é, como amostra de que o tempo final começa a emergir na história. Entrementes, os discípulos apostam na próxima vinda do Messias no trono celeste (At 7,55s), ao mesmo tempo que praticam o batismo como dom do Espírito. Mas a idéia do breve espaço de tempo intermédio fica desautorizada pela dilação indefinida da Parusia, o que obriga os discípulos a uma contínua revisão e correção da esperança.
            Essa teoria vale pelo reconhecimento de que ao se pode reduzir o anuncio do Reino feito por Jesus a seu momento de presença atual. Todavia, ela reduz o próprio Jesus a um profeta do Antigo Testamento, sem o brilho de sua originalidade que o coloca além do passado.

2 – O FUTURO DO REINO

            Certamente, o Reino já está encravado na história em virtude da própria Pessoa de Jesus, com suas ações e mensagem. Contudo, há ainda uma dimensão futura para essa realidade já operante e presente: sua consumação fica reservada para um porvir.
Parece que a chave para desvendar essa descontinuidade seja o título de Filho do Homem (Dn 7,13ss). O título, com seu caráter escatológico, foi usado por Jesus como sua autodesignação. Se o Jesus terreno já é o Filho do Homem – o Reino já penetrado na história - , isso vale para seu estado de humilhação, impotência (Mt 8,20) e até ignorância (Mc 13,32). Todavia, lhe é reservado um futuro glorioso (Mc 13,26; Mt 10, 32s), e a sorte final da humanidade depende de sua atitude frente a Jesus (Mc 8,38). Se Jesus pleiteia sua identidade com o Filho do Homem, sua condição terrestre não manifesta tal identidade gloriosa, guardada  pelo segredo messiânico.
A vinda do Filho do Homem profetizada por Daniel desdobra-se em duas etapas: uma manifestação quenótica (O Filho do Homem veio) e uma majestática (o Filho do Homem virá), e assim, também o Reino se desdobra em dois tempos: “já está entre vós”  (Lc 17,21) e se consumará no porvir. Por isso Jesus ensina os discípulos a rezarem pela vinda do Reino (Lc 11, 2// Mt 6,10). A parábola do joio (Mt 13,24ss.36ss) promete para o futuro o juízo dos maus, acabando com a promiscuidade do presente entre bons e maus.

A polêmica de Jesus com os saduceus (Mc 12,18-27) mostra a convicção com a qual tomou partido numa questão ainda disputada entre os contemporâneos. São numerosas as indicações sobre o destino último de bons e maus. As imagens do banquete messiânico (Mt 8,11s;22,1-10; Lc 14,16.24), da vida no sentido escatológico (Mc 9,43-48; 10,30), da geena (Mt 5,22; Mc 9,43ss), ratificam os últimos desenvolvimentos da doutrina da retribuição no Antigo Testamento, que viam na comunhão da vida divina o término da existência terrena. Sem essa perspectiva futura de juízo, ressurreição, prêmio e castigo,  a presença atual do Reino resultaria dificilmente compreensível e convincente.
Alguns críticos contestaram a autenticidade desses textos citados, que todavia não podem ser impugnados. Outros (Ch.Dodd) rejeitam a autenticidade dos textos sobre a vigilância (Lc 12, 36-40). A parábola das dez virgens (Mt 25,1-12) também ilustra o dito sobre a incerteza da hora, tão reiterado na tradição sinótica, que não se vê porque não poderia provir do próprio Jesus. Foi ele mesmo que redobrou seus esforços para inculcar nos seus discípulos o espírito de tensão expectante com o qual deveriam aguardar o futuro da salvação consumada.
Resumindo: a realidade do Reino, já implantada no agora do ministério de Jesus, está aberta, não concluída; a promessa cumpriu-se de modo incoativo, não acabado. Seu consumador será seu iniciador e implantador: Jesus Servo será revelado como o Cristo Senhor, ao mesmo tempo em que desvelará as dimensões totais e definitivas do Reino. Dessa feita, a escatologia se faz uma função da cristologia. Na lógica da encarnação do Verbo está implicada a necessária temporalização e periodização do ‘éschaton’ (pois o Verbo é o ‘éschaton’), e a não menos necessária escatologização do tempo (pois foi o Verbo-‘éschaton’ que se encarnou). O escatológico se desloca do final para o centro da história, mas – em contrapartida – torna escatológico o trecho histórico que vai do centro até o final.

Ao que foi exposto opõe-se a teoria da escatologia realizada de Ch.E.Dodd. Segundo ele, a idéia que o Reino tenha ainda um futuro procede de uma deformação da mensagem original de Jesus. Os tempos futuros empregados pela linguagem de Jesus teriam somente um sentido simbólico, não real. Somente o quarto evangelho teria mantido o presentismo original da pregação de Jesus. A Páscoa de Cristo teria sido a manifestação e a consumação definitiva da salvação escatológica.
Essa teoria é claramente ideológica: assim como Schweitzer declarava inautênticos os textos sobre o presente do Reino, Dodd declara inautênticos aqueles sobre o futuro do Reino. Além do mais, a postura de Dodd favorece um cristianismo individualista e intimista, com seus conteúdos espiritualizados e desencarnados, pois é evidente que nem a humanidade nem a história e nem o mundo assumiram sua forma definitiva. Desaparece a força cósmica e social da fé, a esperança cristã se vê esvaziada de toda carga profética e de seu potencial crítico frente a história presente, favorecendo um inócuo conformismo. Que esses perigos sejam reais fica demonstrado pela escatologia existencial de Bultmann e de alguns de seus discípulos. Como perceberam as teologias políticas, uma esperança que nada tem a ver com a história que virá, nada pode dizer em e para a história que está acontecendo.


3 – PRESENTE-FUTURO: UMA ESCATOLOGIA BIPOLAR

            As duas séries de afirmações de Jesus sobre o reino presente e o reino futuro não são incompatíveis, como pensam alguns críticos, mas formam um quadro escatológico coerente e inédito. A originalidade da escatologia de Jesus reside nessa tensão entre os dois momentos. Já em Mc 1,15 temos essa tensão entre o agora de ‘o tempo se cumpriu’ (πεπλήρωται) e o ainda não do ‘o Reino está próximo’ (ήγγικεν). A presença do cumprimento, longe de relaxar a tensão para o futuro, a reativa. Por sua vez, a proximidade do futuro confirma a atualidade do cumprimento.

            Mt 13 e Mc 4 contêm as parábolas do crescimento que ilustram com nitidez a simultaneidade presente-futuro do Reino escatológico anunciado por Jesus. A parábola do semeador (Mc 4,3-8 // Mt 13, 3-8) por um lado enaltece a abundância do fruto na terra boa, o que vale somente para o Reino  consumado. Por outro lado,  a comparação semente-fruto representa o contraste entre o início tão modesto e a plenitude final, como também a idéia de um crescimento que pode ser frustrado. O Reino vai de sua implantação atual até a plenitude final através de um lento crescimento sujeito a variadas vicissitudes. A decisão pelo Reino, a ser tomada , manifesta só no futuro todas as suas conseqüências que ainda não são realizadas.
            A parábola do grão de mostarda (Mc 4,30-32 ) está associada pela fonte Q  à do fermento (Mt 13, 31-33 // Lc 13,18-21s). Ambas exemplificam a mesma tese: a continuidade entre um começo real, embora bem modesto, e um final esplêndido em sua plenitude, uma continuidade como a que existe entre a semeadura e a colheita ainda não presente. De fato, a semente não é simples preparação para a frutificação, pois é o fruto em semente.
            A parábola da semente que cresce por si mesma (Mc 4,26-28) enfatiza na atitude do agricultor a necessidade da paciência da espera, mas também a segurança do resultado final, garantido pela atual virtude da própria semente. Acentua-se a tensão entre o já presente e o que ainda está por vir, junto à postura de tranqüila serenidade frente ao futuro, baseada no que está presente.
            A parábola da cizânia e a da rede  (Mt 13, 24-30; 47-50) ao carregarem o acento sobre a fase final do Reino, deixam claro que, se o discernimento se dá no fim, é resultado de um crescimento que se dá agora (v. 30).
            O ‘lógion’ de Mc 8,38 ensina que o juízo que o Filho do Homem levará a cabo no fim dos tempos se baseia na atitude que os homens assumem agora diante de Jesus. Os dois julgamentos, o presente e o futuro, implicam-se  mutuamente. De modo análogo, em Mt 25, 31ss a discriminação escatológica sanciona a condição de benditos ou malditos que os homens adquiriram no presente de suas relações interpessoais. 
            Portanto, a escatologia dos Sinóticos organiza as duas séries de enunciados escatológicos em um quadro unitário no qual se articulam, como componentes essenciais e referidos mutuamente, o presente e o futuro do Reino de Deus.


Nenhum comentário:

Postar um comentário