A
ESCATOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO
1
– A PRESENÇA DO REINO EM JESUS DE NAZARÉ
João
Batista ainda atua como um profeta da expectativa do Antigo Testamento, ao
anunciar a iminência do juízo escatológico (Mt 3, 1-12; Mc 1,2-8; Lc 3,1-18).
Com
Jesus tudo muda: ele é mais do que o Batista (Mt 11,11), mais do que Jonas (Mt
12,41), mais do que Moisés (Mt 5,21), mais do que Salomão (Mt 12,42), mais do
que o Templo ou o sábado (Mt 12, 6.8). Nesse mais já é perceptível uma nítida
vibração escatológica. Jesus ultrapassa o umbral da expectativa e se situa na
esfera do cumprimento (Mt 5,17; Mc 1,15; Lc 4,21).
A
pregação de Jesus se polariza em volta do tema do reino, e se esse é seu tema por excelência, é porque se
trata de algo já atual, é o agora da
presença física e tangível de Jesus. Pregação, milagres, curas, exorcismos, o
perdão concedido e não só anunciado, são a demonstração inequívoca da presença
do Reino e de sua natureza salvífica (Mt 11,5; Lc 10,18; 11,20;17,20s). A comunidade dos doze discípulos inaugura a
comunidade escatológica das doze tribos, antecipa a plenitude final do povo da
aliança. As refeições de Jesus constituem o símbolo e a realização inicial do
banquete messiânico, anúncio que o tempo da salvação já irrompeu.
Segundo
uma escola teológica, denominada da escatologia
conseqüente (A.Schweitzer), Jesus teria assumido as representações
apocalípticas do tempo final que ele teria esperado para um futuro próximo. Com
a crise pela não realização do Reino, Jesus assume a figura do Filho do Homem,
cuja ressurreição seria a condição prévia para a instauração do Reino. Mas não
é o que acontece, e então os discípulos interpretam Pentecostes como
cumprimento das profecias messiânicas, isto é, como amostra de que o tempo
final começa a emergir na história. Entrementes, os discípulos apostam na
próxima vinda do Messias no trono celeste (At 7,55s), ao mesmo tempo que
praticam o batismo como dom do Espírito. Mas a idéia do breve espaço de tempo
intermédio fica desautorizada pela dilação indefinida da Parusia, o que obriga
os discípulos a uma contínua revisão e correção da esperança.
Essa
teoria vale pelo reconhecimento de que ao se pode reduzir o anuncio do Reino
feito por Jesus a seu momento de presença atual. Todavia, ela reduz o próprio
Jesus a um profeta do Antigo Testamento, sem o brilho de sua originalidade que
o coloca além do passado.
2
– O FUTURO DO REINO
Certamente,
o Reino já está encravado na história em virtude da própria Pessoa de Jesus,
com suas ações e mensagem. Contudo, há ainda uma dimensão futura para essa
realidade já operante e presente: sua consumação fica reservada para um porvir.
Parece que a chave para
desvendar essa descontinuidade seja o título de Filho do Homem (Dn 7,13ss). O
título, com seu caráter escatológico, foi usado por Jesus como sua
autodesignação. Se o Jesus terreno já é o Filho do Homem – o Reino já penetrado
na história - , isso vale para seu estado de humilhação, impotência (Mt 8,20) e
até ignorância (Mc 13,32). Todavia, lhe é reservado um futuro glorioso (Mc
13,26; Mt 10, 32s), e a sorte final da humanidade depende de sua atitude frente
a Jesus (Mc 8,38). Se Jesus pleiteia sua identidade com o Filho do Homem, sua
condição terrestre não manifesta tal identidade gloriosa, guardada pelo segredo messiânico.
A vinda do Filho do Homem
profetizada por Daniel desdobra-se em duas etapas: uma manifestação quenótica
(O Filho do Homem veio) e uma majestática (o Filho do Homem virá), e assim,
também o Reino se desdobra em dois tempos: “já está entre vós” (Lc 17,21) e se consumará no porvir. Por isso
Jesus ensina os discípulos a rezarem pela vinda do Reino (Lc 11, 2// Mt 6,10).
A parábola do joio (Mt 13,24ss.36ss) promete para o futuro o juízo dos maus,
acabando com a promiscuidade do presente entre bons e maus.
A polêmica de Jesus com os
saduceus (Mc 12,18-27) mostra a convicção com a qual tomou partido numa questão
ainda disputada entre os contemporâneos. São numerosas as indicações sobre o
destino último de bons e maus. As imagens do banquete messiânico (Mt
8,11s;22,1-10; Lc 14,16.24), da vida no sentido escatológico (Mc 9,43-48;
10,30), da geena (Mt 5,22; Mc 9,43ss), ratificam os últimos desenvolvimentos da
doutrina da retribuição no Antigo Testamento, que viam na comunhão da vida
divina o término da existência terrena. Sem essa perspectiva futura de juízo,
ressurreição, prêmio e castigo, a
presença atual do Reino resultaria dificilmente compreensível e convincente.
Alguns críticos
contestaram a autenticidade desses textos citados, que todavia não podem ser
impugnados. Outros (Ch.Dodd) rejeitam a autenticidade dos textos sobre a
vigilância (Lc 12, 36-40). A parábola das dez virgens (Mt 25,1-12) também
ilustra o dito sobre a incerteza da hora, tão reiterado na tradição sinótica,
que não se vê porque não poderia provir do próprio Jesus. Foi ele mesmo que
redobrou seus esforços para inculcar nos seus discípulos o espírito de tensão
expectante com o qual deveriam aguardar o futuro da salvação consumada.
Resumindo: a realidade do
Reino, já implantada no agora do
ministério de Jesus, está aberta, não concluída; a promessa cumpriu-se de modo
incoativo, não acabado. Seu consumador será seu iniciador e implantador: Jesus
Servo será revelado como o Cristo Senhor, ao mesmo tempo em que desvelará as
dimensões totais e definitivas do Reino. Dessa feita, a escatologia se faz uma função
da cristologia. Na lógica da encarnação do Verbo está implicada a necessária
temporalização e periodização do ‘éschaton’ (pois o Verbo é o ‘éschaton’), e a
não menos necessária escatologização do tempo (pois foi o Verbo-‘éschaton’ que
se encarnou). O escatológico se desloca do final para o centro da história, mas
– em contrapartida – torna escatológico o trecho histórico que vai do centro
até o final.
Ao que foi exposto opõe-se
a teoria da escatologia realizada de
Ch.E.Dodd. Segundo ele, a idéia que o Reino tenha ainda um futuro procede de
uma deformação da mensagem original de Jesus. Os tempos futuros empregados pela
linguagem de Jesus teriam somente um sentido simbólico, não real. Somente o
quarto evangelho teria mantido o presentismo original da pregação de Jesus. A
Páscoa de Cristo teria sido a manifestação e a consumação definitiva da
salvação escatológica.
Essa teoria é claramente
ideológica: assim como Schweitzer declarava inautênticos os textos sobre o
presente do Reino, Dodd declara inautênticos aqueles sobre o futuro do Reino.
Além do mais, a postura de Dodd favorece um cristianismo individualista e
intimista, com seus conteúdos espiritualizados e desencarnados, pois é evidente
que nem a humanidade nem a história e nem o mundo assumiram sua forma
definitiva. Desaparece a força cósmica e social da fé, a esperança cristã se vê
esvaziada de toda carga profética e de seu potencial crítico frente a história
presente, favorecendo um inócuo conformismo. Que esses perigos sejam reais fica
demonstrado pela escatologia existencial de Bultmann e de alguns de seus
discípulos. Como perceberam as teologias políticas, uma esperança que nada tem
a ver com a história que virá, nada pode dizer em e para a história que está
acontecendo.
3
– PRESENTE-FUTURO: UMA ESCATOLOGIA BIPOLAR
As
duas séries de afirmações de Jesus sobre o reino presente e o reino futuro não
são incompatíveis, como pensam alguns críticos, mas formam um quadro
escatológico coerente e inédito. A originalidade da escatologia de Jesus reside
nessa tensão entre os dois momentos. Já em Mc 1,15 temos essa tensão entre o
agora de ‘o tempo se cumpriu’ (πεπλήρωται) e o ainda não do ‘o Reino está
próximo’ (ήγγικεν). A presença do cumprimento, longe de relaxar a tensão para o
futuro, a reativa. Por sua vez, a proximidade do futuro confirma a atualidade
do cumprimento.
Mt
13 e Mc 4 contêm as parábolas do crescimento que ilustram com nitidez a
simultaneidade presente-futuro do Reino escatológico anunciado por Jesus. A
parábola do semeador (Mc 4,3-8 // Mt 13, 3-8) por um lado enaltece a abundância
do fruto na terra boa, o que vale somente para o Reino consumado. Por outro lado, a comparação semente-fruto representa o
contraste entre o início tão modesto e a plenitude final, como também a idéia
de um crescimento que pode ser frustrado. O Reino vai de sua implantação atual
até a plenitude final através de um lento crescimento sujeito a variadas
vicissitudes. A decisão pelo Reino, a ser tomada já, manifesta só no futuro todas as suas conseqüências que ainda não são realizadas.
A
parábola do grão de mostarda (Mc 4,30-32 ) está associada pela fonte Q à do fermento (Mt 13, 31-33 // Lc 13,18-21s). Ambas exemplificam a mesma tese: a
continuidade entre um começo real, embora bem modesto, e um final esplêndido em
sua plenitude, uma continuidade como a que existe entre a semeadura e a
colheita ainda não presente. De
fato, a semente não é simples preparação para a frutificação, pois já é o fruto em semente.
A
parábola da semente que cresce por si mesma (Mc 4,26-28) enfatiza na atitude do
agricultor a necessidade da paciência da espera, mas também a segurança do
resultado final, garantido pela atual virtude da própria semente. Acentua-se a
tensão entre o já presente e o que ainda
está por vir, junto à postura de tranqüila serenidade frente ao futuro,
baseada no que já está presente.
A
parábola da cizânia e a da rede (Mt 13,
24-30; 47-50) ao carregarem o acento sobre a fase final do Reino, deixam claro
que, se o discernimento se dá no fim, é resultado de um crescimento que se dá
agora (v. 30).
O
‘lógion’ de Mc 8,38 ensina que o juízo que o Filho do Homem levará a cabo no
fim dos tempos se baseia na atitude que os homens assumem agora diante de
Jesus. Os dois julgamentos, o presente e o futuro, implicam-se mutuamente. De modo análogo, em Mt 25, 31ss a
discriminação escatológica sanciona a condição de benditos ou malditos que os
homens adquiriram no presente de suas relações interpessoais.
Portanto,
a escatologia dos Sinóticos organiza as duas séries de enunciados escatológicos
em um quadro unitário no qual se articulam, como componentes essenciais e
referidos mutuamente, o presente e o futuro do Reino de Deus.
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