As Heresias
Podemos
saber alguma coisa da fé e do seu desenvolvimento através da polêmica contra as
heresias. Na verdade naquele momento não existiam escritores de dogmática, se
escrevia para contraporem-se as heresias, para responder aos desafios feitos à
ortodoxia.
A
diferença entre as heresias está na sua origem. Em um primeiro momento são
provenientes do judeu-cristianismo e depois do cristianismo de origem pagã.
O judeu-cristianismo heterodoxo
Muito
cedo, junto a ortodoxia judeu-cristã, surgiram grupos judeus que assumiam
elementos cristãos, mas transformando-os e distinguindo-os assim do judaísmo
oficial, dirigido pelos rabinos e também do cristianismo. Mas as fronteiras
entre os grupos não são assim claras e as nossas notícias, geralmente tardias,
às vezes não são confiáveis. Os nossos conhecimentos sobre detalhes do
judeu-cristianismo são geralmente hipotéticos.
A
cristologia e a observância da lei tornaram-se os pontos cruciais que
conduziram a formação das várias seitas que se separavam do judeu-cristianismo.
Os seguidores de Cerinto
Fala-nos
Irineu de Lion. Segundo Irineu, Cerinto viveu na Ásia Menor, no final do
primeiro século. Ensinava que Jesus era filho natural de José e Maria. Pela sua
virtude e sabedoria, o Espírito Santo desceu sobre ele em forma de pomba
durante o batismo no rio Jordão. A partir deste momento ele pregou o Pai, até
este momento desconhecido, e começou a praticar milagres. Segundo Cerinto se
podia falar de Jesus “Cristo” só a partir do momento da sua unção em ocasião do
batismo. É uma doutrina adocionista: o Pai adotou como Filho Jesus de Nazaré no
momento do batismo (filiação jurídica, não metafísica).
Com
relação a paixão de Cristo, Cerinto recorre ao docetismo: antes da paixão, o
Cristo (ou seja o elemento divino) abandonou o Jesus humano na cruz. Somente
Jesus padeceu, morreu e ressuscitou.
Os ebionitas
Ebion:
pobre, humilde, na língua hebraica. Talvez se tratava do modo em que este grupo
se autodenominava, exprimindo assim a sua vida simples. Este grupo se separou
do judeu-cristianismo, ao qual originariamente pertencia, sustentando a
observância da lei. Pode-se presumir que a separação dos ebionitas dos
judeu-cristãos tenha acontecido na primeira metade do segundo século. Os
ebionitas possuíam um evangelho próprio, talvez aquele de Mateus, mas
reelaborado segundo as suas idéias.
Este
movimento tem uma visão dualista na cosmologia: existem dois princípios, um bom
e outro ruim, criados por Deus. O princípio ruim é também devido ao criador. O
princípio ruim domina o mundo presente. Mas Deus reservou o governo do mundo
futuro ao princípio bom, a Cristo, o profeta messiânico prometido. Os ebionitas
não conheciam o filho de Deus pré-existente, ou seja o Logos. Jesus no batismo
vem repleto de virtude divina, consagrado como Messias, enquanto que antes era
simplesmente o filho natural de José e Maria. Deus o consagrou pela sua fiel e
perfeita observância da lei, a qual também Jesus era subordinado: Jesus é
salvador enquanto obediente a lei, da qual depende o valor salvífico do qual é
portador. Negam a divindade de Jesus.
A sua
missão consiste em reconduzir os judeus à observância da lei, não mais
falsificada, e em conquistar os pagãos a este judaísmo purificado. A morte de
Jesus não tem valor salvífico, já que Cristo abandonou Jesus morrente na cruz.
Só o elemento humano morreu e a sua morte não tem poder salvífico. Adocionismo
e exclusão do significado soteriológico (salvação) da vida e morte de Jesus
determinam a cristologia dos ebionitas. Tal cristologia era coligada com a
necessidade da observância da lei, purificada das falsificações que tinham sido
introduzidas depois de Moisés, como os sacrifícios cruentos. Objetivo do
Messias era purificar o judaísmo dos sacrifícios cruentos. Como tinha sido um
sacrifício cruento a morte de Jesus não podia ter nenhum valor salvífico.
Os
sacrifícios deviam ser substituídos pela vida pobre e da comunhão dos bens. A
purificação dos pecados se obtém através das abluções cotidianas, imitando os
membros de Qumran, através da participação da ceia sagrada, celebrada com água
e pão (não com vinho) e com a santificação seja do sábado que do domingo. A
estima pela lei levava a um forte anti-paulinismo: Paulo era considerado um
adversário da lei, um que tinha ousado falsificar a verdadeira doutrina de
Jesus. Os ebionitas contestavam a autoridade apostólica de Paulo porque ele não
tinha conhecido Jesus e a aparição de Damasco tinha sido uma ilusão produzida
por um demônio malvado.
Existem
muitos paralelismos entre os ebionitas e os essênios. Talvez Qumran influenciou
os ebionitas, mas não tendo documentos de prova, podemos somente fazer
suposições. Contudo paralelismo não significa imediatamente dependência.
Os elcasaitas
A
seita baseava a sua fé sobre um livro sagrado de origem celeste que falava de
dois princípios, um feminino (Espírito Santo) e um masculino (Cristo). Os
elcasaitas conheciam um batismo que se recebia vestido e que operava a remissão
dos pecados. Através de várias abluções os aderentes eram liberados das doenças
e dos vícios. São muito semelhantes aos ebionitas pela observância da lei, da
circuncisão, do sábado e por aquilo que pensavam dos sacrifícios. Combatiam as
doutrinas de Paulo. Distinguiam-se dos ebionitas pela visão apocalíptica:
esperavam um grande guerra que produziria o fim do mundo. Mas uma fórmula
misteriosa, mantida secreta, como o conteúdo do livro celeste, garantia a
salvação para eles.
Outras
seitas surgiram, misturando influxos cristãos, judeus, gnósticos: os
nicolaitas, os simonianos,os seguidores de Menendro, os de Saturnilo, os de
Carpocrate, de Basílide, os barbelognosticos, os setianos. Importante é não
reduzir a fenomenologia judeu-cristã somente aos ebionitas e aos elcasaitas. Se
pode, contudo, constatar uma tendência de desenvolvimento que começa no
ambiente do judaísmo do qual várias seitas se afastam assumindo elementos do
cristianismo-judaizante, mas as vezes hostil ao judaísmo e a lei, para terminar
em idéias gnósticas.
A heterodoxia cristã
Entre
70 d.C. e 140 d.C. o cristianismo tinha se difundido nas várias regiões do
Império e no oriente, fora dos seus confins, gerando uma variedade de
expressões. As igrejas aramaicas, siríacas, asiáticas e romanas possuíam as
suas tradições. Junto a estas igrejas se desenvolveram grupos heterodoxos que
nem sempre eram reconhecidos como tal. Os conflitos não eram mais evitáveis e
os grupos heterodoxos aumentavam. A luta entre ortodoxia e heterodoxia começou
na metade do segundo século.
Marcião
Foi
um dos mais importantes teólogos heréticos do segundo século. As notícias que
temos dele nos chegaram através de fontes indiretas, dos numerosos escritos dos
seus opositores. Originário de Sinope (Mar Negro), filho do bispo da cidade,
foi excomungado pelo seu pai. Enriqueceu-se como armador. Por certo tempo foi
membro da comunidade de Roma a qual doou uma grande soma de dinheiro. A única
data certa da sua biografia é 144 d.C., quando foi excomungado também da
comunidade romana: a comunidade lhe restituiu integralmente a soma recebida.
Depois
deste evento ele fundou uma igreja própria que se expandiu com velocidade. Era
um ótimo organizador. Até o VI século a igreja de Marcião existiu.
Do
pensamento de Marcião (como de todos os outros heréticos deste tempo) só
conhecemos alguma coisa através dos escritos dos seus adversários ortodoxos,
que geralmente desfiguravam e ridicularizavam as doutrinas heréticas.
Marcião
não queria ser um fundador de uma nova igreja, um inovador, nem um profeta;
queria apenas pregar na sua pureza a mensagem genuína e originária de Jesus,
que ele considerava que tinha sido deturpado pela igreja contemporânea. Ou
seja, era um reformador. O núcleo desta mensagem consistia, segundo ele, na
redenção do homem, atuada por pura misericórdia de Deus em Jesus Cristo.
Segundo Marcião, o Deus testemunhado pelo Antigo Testamento é um juiz potente, justo, mas também colérico, cruel, até mesmo
mesquinho, capaz de afirmar que foi ele a provocar as desgraças. Este Deus do
Antigo Testamento não pode ser o mesmo Deus Pai de Jesus Cristo, este de fato é
somente bom e a prova é que enviou o seu Filho. Disto resultam duas
conseqüências:
-
Deus Pai é distinto do Deus Criador do Antigo Testamento, que é patrão deste
mundo;
- O
Antigo Testamento deve ser refutado como fundamento da fé cristã.
Não
existe continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Este é o núcleo da
idéia marcionita. Por isto a tentativa de Marcião é eliminar todos os elementos
judaicos do Novo Testamento.
Na
sua obra Antítese (que não possuímos e que conhecemos somente através da
refutação adversária), Marcião opõe o Deus do Evangelho ao Deus da Lei: o
primeiro é bom e salvador, o segundo e justo e juiz; o primeiro revela a sua
essência enviando o próprio Filho, o segundo se manifesta criando este mundo
terreno.
O
Deus do Novo Testamento, mesmo não tendo nenhuma obrigação com os homens, que
são seres criados e que pertencem a um outro Deus, é contudo misericordioso,
fazendo anunciar por Cristo, sem nenhuma punição, a remissão dos pecados.
Qualquer um que crê nisto é liberado do legalismo; e por isto tem a
possibilidade de uma vida nova, na qual deve reconhecimento ao amor e a
misericórdia de Deus. Daqui surge uma nova ética: a graça leva a ética, o doar
à mudança de vida.
Mas
isto não acontece automaticamente. De fato característica da ética marcionita é
uma rigorosa ascese, ou seja, renúncia a matéria, a estrutura deste mundo e as
tentações. Marcião prega conseqüentemente a abstinência do matrimônio e da
procriação, para não perpetuar o mundo decaído do Deus criador do Antigo
Testamento. Além disso, propõe a abstinência da carne e do vinho.
Marcião funda o seu evangelho baseando-se exclusivamente
em Paulo e Lucas. Mas para Marcião estes escritos não foram conservados
genuínos, porque logo depois da sua redação teriam sido falsificados pelos
judaizantes, ou seja, os seguidores do Deus do Antigo Testamento, segundo
critérios conveniente a eles, introduzindo em Paulo e em Lucas elementos
legalistas e jurídicos. Marcião corrigiu, então, as cartas paulinas
consideradas autênticas (excluídas as cartas pastorais, expressão mais do
legalismo do que da liberdade paulina) e também do evangelho de Lucas,
retirando tudo aquilo que fosse judaizante. Marcião tentou elaborar um
cristianismo coerente com a concepção gnóstica e alimentado por um forte
anti-semitismo.
Criou
assim em certo sentido o primeiro cânone neotestamentário (mesmo sendo composto
somente dos textos paulinos e do evangelho de Lucas e ainda corrigidos), que
não possuímos. Fez deste modo um serviço a Igreja, sublinhando a necessidade de
um cânone para os escritos do Novo Testamento e de critérios para a sua
elaboração.
Valentim
Originário
do Egito, chegou a Roma no tempo do papa Igino. Como nos refere Tertuliano, nos
anos 154/155 d.C.. Valentim foi candidato a bispo de Roma, mas o seu sonho
desapareceu com a eleição do papa Aniceto. Talvez por esta desilusão, deixou
bem cedo Roma para se dirigir ao Oriente, talvez em Cipro. Retornando a Roma,
morreu pouco depois, mais ou menos em 160 d.C.
Da
sua obra ficaram poucos fragmentos, transmitido sobretudo por Clemente de
Alexandria, mas que não são suficientes para reconstruir o seu pensamento. A
biblioteca de Nag Hammadi (biblioteca gnóstica) recolhe escritos coligados ao
pensamento valentiniano, por quanto este seja possível reconstruir. Entre estes
escritos temos o Evangelho da Verdade, o Evangelho de Felipe, o Tractatus
Tripartirus. Dificilmente estes escritos são atribuíveis a Valentim, mas
provavelmente a sua escola. Sabemos apenas que ele escreveu homilias, salmos e
várias cartas.
Por aquilo que ficou aparece a imagem de um teólogo
bíblico que possui influxo platônico, mas que pouco se separa das fronteiras da
ortodoxia cristã. É difícil dizer se Valentim morreu no seio da Igreja
ortodoxa. Os padres que polemizam com a escola valentiniana consideram herética
também a sua origem.
Muito
mais detalhada são pelo contrário as informações com relação ao pensamento
teológico dos seus discípulos, graças as informações dadas por Irineu,
Hipólito, Tertuliano, Orígenes, Clemente de Alexandria e Epifânio. Valentim e a
sua escola encontram grande eco na literatura patrística.
Também
o valentinianismo é um sistema gnóstico: parte do Um, elemento divino que é a
origem de tudo e que já em si leva certa diferenciação, por um pecado ou por um
erro cai na matéria, como punição do pecado ou por efeito do erro, e tem
necessidade de ser salvo, ou seja, de retornar ao Um. Existem elementos que
impedem este retorno e querem manter o status quo (parte divina presa na
matéria); mas através da gnose, ou seja, uma iluminação e conhecimento infuso,
se conhecem os meios para enganar tais elementos que impedem o retorno. Tudo
aquilo que é matéria é ruim e deve ser superado por isto também propõe uma
ascese rígida.
Montanismo
Montano
nasceu na Frígia (Ásia Menor) em 155-160 d.C. e junto com duas profetisas
Maximila e Priscila iniciou a sua pregação. Depois da sua conversão ao
cristianismo sentiu-se não só o porta-voz do Espírito Santo mas a sua
encarnação.
A
essência deste movimento é o anúncio da eminência do fim do mundo que Maximila
prognosticou para logo depois da sua morte. As várias guerras começadas no
governo de Marco Aurélio e a difusão da peste acontecida logo depois foram
interpretadas como sinais premonitórios do final do mundo. Em vista disto é
prescrita uma moral rigorosamente ascética, como a proibição do matrimônio
(mais tarde aplacado com a obrigação da monogamia, que excluía um segundo
matrimônio) e a prescrição de jejuns severos e consistentes esmolas. O martírio
é encorajado e proibido escapar das perseguições. A nova Jerusalém da qual fala
o Apocalipse se localiza na Frígia. Os crentes deverão estar no lugar indicado
no momento na chegada do Senhor.
A
dogmática da seita permanece ortodoxa; o movimento em substância não se
interessa pelas questões teológicas, mas se inspira nas antigas tradições
proféticas e apocalípticas. O que provocou a condenação de Montano foi o fato
de questionar a autoridade dos bispos, pois com a pretensão de que nele e por
ele falava o Espírito Santo tinha-se como superior a própria autoridade dos
bispos e das Escrituras.
O movimento montanista não ficou restrito a Frígia,
conseguiu seguidores no Oriente e no Ocidente. Pela sua proposta de retorno as
origens cristãs, a crítica a Igreja episcopal urbana e pelo seu rigorismo moral
deram ao movimento muita popularidade principalmente entre as classes mais
baixas. Um dos seus seguidores mais famosos foi Tertuliano. O montanismo foi
condenado por vários sínodos do final do século II. Mas a sua última condenação
foi no final do século VII no Concílio de Constantinopla (VI Concílio Ecumênico).
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