sábado, 13 de fevereiro de 2016

AS HERESIAS

As Heresias


            Podemos saber alguma coisa da fé e do seu desenvolvimento através da polêmica contra as heresias. Na verdade naquele momento não existiam escritores de dogmática, se escrevia para contraporem-se as heresias, para responder aos desafios feitos à ortodoxia.
            A diferença entre as heresias está na sua origem. Em um primeiro momento são provenientes do judeu-cristianismo e depois do cristianismo de origem pagã.

O judeu-cristianismo heterodoxo

            Muito cedo, junto a ortodoxia judeu-cristã, surgiram grupos judeus que assumiam elementos cristãos, mas transformando-os e distinguindo-os assim do judaísmo oficial, dirigido pelos rabinos e também do cristianismo. Mas as fronteiras entre os grupos não são assim claras e as nossas notícias, geralmente tardias, às vezes não são confiáveis. Os nossos conhecimentos sobre detalhes do judeu-cristianismo são geralmente hipotéticos.
            A cristologia e a observância da lei tornaram-se os pontos cruciais que conduziram a formação das várias seitas que se separavam do judeu-cristianismo.

Os seguidores de Cerinto
            Fala-nos Irineu de Lion. Segundo Irineu, Cerinto viveu na Ásia Menor, no final do primeiro século. Ensinava que Jesus era filho natural de José e Maria. Pela sua virtude e sabedoria, o Espírito Santo desceu sobre ele em forma de pomba durante o batismo no rio Jordão. A partir deste momento ele pregou o Pai, até este momento desconhecido, e começou a praticar milagres. Segundo Cerinto se podia falar de Jesus “Cristo” só a partir do momento da sua unção em ocasião do batismo. É uma doutrina adocionista: o Pai adotou como Filho Jesus de Nazaré no momento do batismo (filiação jurídica, não metafísica).
            Com relação a paixão de Cristo, Cerinto recorre ao docetismo: antes da paixão, o Cristo (ou seja o elemento divino) abandonou o Jesus humano na cruz. Somente Jesus padeceu, morreu e ressuscitou.

Os ebionitas
            Ebion: pobre, humilde, na língua hebraica. Talvez se tratava do modo em que este grupo se autodenominava, exprimindo assim a sua vida simples. Este grupo se separou do judeu-cristianismo, ao qual originariamente pertencia, sustentando a observância da lei. Pode-se presumir que a separação dos ebionitas dos judeu-cristãos tenha acontecido na primeira metade do segundo século. Os ebionitas possuíam um evangelho próprio, talvez aquele de Mateus, mas reelaborado segundo as suas idéias.
            Este movimento tem uma visão dualista na cosmologia: existem dois princípios, um bom e outro ruim, criados por Deus. O princípio ruim é também devido ao criador. O princípio ruim domina o mundo presente. Mas Deus reservou o governo do mundo futuro ao princípio bom, a Cristo, o profeta messiânico prometido. Os ebionitas não conheciam o filho de Deus pré-existente, ou seja o Logos. Jesus no batismo vem repleto de virtude divina, consagrado como Messias, enquanto que antes era simplesmente o filho natural de José e Maria. Deus o consagrou pela sua fiel e perfeita observância da lei, a qual também Jesus era subordinado: Jesus é salvador enquanto obediente a lei, da qual depende o valor salvífico do qual é portador. Negam a divindade de Jesus.
            A sua missão consiste em reconduzir os judeus à observância da lei, não mais falsificada, e em conquistar os pagãos a este judaísmo purificado. A morte de Jesus não tem valor salvífico, já que Cristo abandonou Jesus morrente na cruz. Só o elemento humano morreu e a sua morte não tem poder salvífico. Adocionismo e exclusão do significado soteriológico (salvação) da vida e morte de Jesus determinam a cristologia dos ebionitas. Tal cristologia era coligada com a necessidade da observância da lei, purificada das falsificações que tinham sido introduzidas depois de Moisés, como os sacrifícios cruentos. Objetivo do Messias era purificar o judaísmo dos sacrifícios cruentos. Como tinha sido um sacrifício cruento a morte de Jesus não podia ter nenhum valor salvífico.
            Os sacrifícios deviam ser substituídos pela vida pobre e da comunhão dos bens. A purificação dos pecados se obtém através das abluções cotidianas, imitando os membros de Qumran, através da participação da ceia sagrada, celebrada com água e pão (não com vinho) e com a santificação seja do sábado que do domingo. A estima pela lei levava a um forte anti-paulinismo: Paulo era considerado um adversário da lei, um que tinha ousado falsificar a verdadeira doutrina de Jesus. Os ebionitas contestavam a autoridade apostólica de Paulo porque ele não tinha conhecido Jesus e a aparição de Damasco tinha sido uma ilusão produzida por um demônio malvado.
            Existem muitos paralelismos entre os ebionitas e os essênios. Talvez Qumran influenciou os ebionitas, mas não tendo documentos de prova, podemos somente fazer suposições. Contudo paralelismo não significa imediatamente dependência.

Os elcasaitas
            A seita baseava a sua fé sobre um livro sagrado de origem celeste que falava de dois princípios, um feminino (Espírito Santo) e um masculino (Cristo). Os elcasaitas conheciam um batismo que se recebia vestido e que operava a remissão dos pecados. Através de várias abluções os aderentes eram liberados das doenças e dos vícios. São muito semelhantes aos ebionitas pela observância da lei, da circuncisão, do sábado e por aquilo que pensavam dos sacrifícios. Combatiam as doutrinas de Paulo. Distinguiam-se dos ebionitas pela visão apocalíptica: esperavam um grande guerra que produziria o fim do mundo. Mas uma fórmula misteriosa, mantida secreta, como o conteúdo do livro celeste, garantia a salvação para eles.

            Outras seitas surgiram, misturando influxos cristãos, judeus, gnósticos: os nicolaitas, os simonianos,os seguidores de Menendro, os de Saturnilo, os de Carpocrate, de Basílide, os barbelognosticos, os setianos. Importante é não reduzir a fenomenologia judeu-cristã somente aos ebionitas e aos elcasaitas. Se pode, contudo, constatar uma tendência de desenvolvimento que começa no ambiente do judaísmo do qual várias seitas se afastam assumindo elementos do cristianismo-judaizante, mas as vezes hostil ao judaísmo e a lei, para terminar em idéias gnósticas.

A heterodoxia cristã

            Entre 70 d.C. e 140 d.C. o cristianismo tinha se difundido nas várias regiões do Império e no oriente, fora dos seus confins, gerando uma variedade de expressões. As igrejas aramaicas, siríacas, asiáticas e romanas possuíam as suas tradições. Junto a estas igrejas se desenvolveram grupos heterodoxos que nem sempre eram reconhecidos como tal. Os conflitos não eram mais evitáveis e os grupos heterodoxos aumentavam. A luta entre ortodoxia e heterodoxia começou na metade do segundo século.

Marcião
            Foi um dos mais importantes teólogos heréticos do segundo século. As notícias que temos dele nos chegaram através de fontes indiretas, dos numerosos escritos dos seus opositores. Originário de Sinope (Mar Negro), filho do bispo da cidade, foi excomungado pelo seu pai. Enriqueceu-se como armador. Por certo tempo foi membro da comunidade de Roma a qual doou uma grande soma de dinheiro. A única data certa da sua biografia é 144 d.C., quando foi excomungado também da comunidade romana: a comunidade lhe restituiu integralmente a soma recebida.
            Depois deste evento ele fundou uma igreja própria que se expandiu com velocidade. Era um ótimo organizador. Até o VI século a igreja de Marcião existiu.
            Do pensamento de Marcião (como de todos os outros heréticos deste tempo) só conhecemos alguma coisa através dos escritos dos seus adversários ortodoxos, que geralmente desfiguravam e ridicularizavam as doutrinas heréticas.
            Marcião não queria ser um fundador de uma nova igreja, um inovador, nem um profeta; queria apenas pregar na sua pureza a mensagem genuína e originária de Jesus, que ele considerava que tinha sido deturpado pela igreja contemporânea. Ou seja, era um reformador. O núcleo desta mensagem consistia, segundo ele, na redenção do homem, atuada por pura misericórdia de Deus em Jesus Cristo. Segundo Marcião, o Deus testemunhado pelo Antigo Testamento é um juiz potente,  justo, mas também colérico, cruel, até mesmo mesquinho, capaz de afirmar que foi ele a provocar as desgraças. Este Deus do Antigo Testamento não pode ser o mesmo Deus Pai de Jesus Cristo, este de fato é somente bom e a prova é que enviou o seu Filho. Disto resultam duas conseqüências:
            - Deus Pai é distinto do Deus Criador do Antigo Testamento, que é patrão deste mundo;
            - O Antigo Testamento deve ser refutado como fundamento da fé cristã.
            Não existe continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Este é o núcleo da idéia marcionita. Por isto a tentativa de Marcião é eliminar todos os elementos judaicos do Novo Testamento.
            Na sua obra Antítese (que não possuímos e que conhecemos somente através da refutação adversária), Marcião opõe o Deus do Evangelho ao Deus da Lei: o primeiro é bom e salvador, o segundo e justo e juiz; o primeiro revela a sua essência enviando o próprio Filho, o segundo se manifesta criando este mundo terreno.
            O Deus do Novo Testamento, mesmo não tendo nenhuma obrigação com os homens, que são seres criados e que pertencem a um outro Deus, é contudo misericordioso, fazendo anunciar por Cristo, sem nenhuma punição, a remissão dos pecados. Qualquer um que crê nisto é liberado do legalismo; e por isto tem a possibilidade de uma vida nova, na qual deve reconhecimento ao amor e a misericórdia de Deus. Daqui surge uma nova ética: a graça leva a ética, o doar à mudança de vida.
            Mas isto não acontece automaticamente. De fato característica da ética marcionita é uma rigorosa ascese, ou seja, renúncia a matéria, a estrutura deste mundo e as tentações. Marcião prega conseqüentemente a abstinência do matrimônio e da procriação, para não perpetuar o mundo decaído do Deus criador do Antigo Testamento. Além disso, propõe a abstinência da carne e do vinho.
            Marcião funda o seu evangelho baseando-se exclusivamente em Paulo e Lucas. Mas para Marcião estes escritos não foram conservados genuínos, porque logo depois da sua redação teriam sido falsificados pelos judaizantes, ou seja, os seguidores do Deus do Antigo Testamento, segundo critérios conveniente a eles, introduzindo em Paulo e em Lucas elementos legalistas e jurídicos. Marcião corrigiu, então, as cartas paulinas consideradas autênticas (excluídas as cartas pastorais, expressão mais do legalismo do que da liberdade paulina) e também do evangelho de Lucas, retirando tudo aquilo que fosse judaizante. Marcião tentou elaborar um cristianismo coerente com a concepção gnóstica e alimentado por um forte anti-semitismo.
            Criou assim em certo sentido o primeiro cânone neotestamentário (mesmo sendo composto somente dos textos paulinos e do evangelho de Lucas e ainda corrigidos), que não possuímos. Fez deste modo um serviço a Igreja, sublinhando a necessidade de um cânone para os escritos do Novo Testamento e de critérios para a sua elaboração.

Valentim
            Originário do Egito, chegou a Roma no tempo do papa Igino. Como nos refere Tertuliano, nos anos 154/155 d.C.. Valentim foi candidato a bispo de Roma, mas o seu sonho desapareceu com a eleição do papa Aniceto. Talvez por esta desilusão, deixou bem cedo Roma para se dirigir ao Oriente, talvez em Cipro. Retornando a Roma, morreu pouco depois, mais ou menos em 160 d.C.
            Da sua obra ficaram poucos fragmentos, transmitido sobretudo por Clemente de Alexandria, mas que não são suficientes para reconstruir o seu pensamento. A biblioteca de Nag Hammadi (biblioteca gnóstica) recolhe escritos coligados ao pensamento valentiniano, por quanto este seja possível reconstruir. Entre estes escritos temos o Evangelho da Verdade, o Evangelho de Felipe, o Tractatus Tripartirus. Dificilmente estes escritos são atribuíveis a Valentim, mas provavelmente a sua escola. Sabemos apenas que ele escreveu homilias, salmos e várias cartas.
            Por aquilo que ficou aparece a imagem de um teólogo bíblico que possui influxo platônico, mas que pouco se separa das fronteiras da ortodoxia cristã. É difícil dizer se Valentim morreu no seio da Igreja ortodoxa. Os padres que polemizam com a escola valentiniana consideram herética também a sua origem.
            Muito mais detalhada são pelo contrário as informações com relação ao pensamento teológico dos seus discípulos, graças as informações dadas por Irineu, Hipólito, Tertuliano, Orígenes, Clemente de Alexandria e Epifânio. Valentim e a sua escola encontram grande eco na literatura patrística.
            Também o valentinianismo é um sistema gnóstico: parte do Um, elemento divino que é a origem de tudo e que já em si leva certa diferenciação, por um pecado ou por um erro cai na matéria, como punição do pecado ou por efeito do erro, e tem necessidade de ser salvo, ou seja, de retornar ao Um. Existem elementos que impedem este retorno e querem manter o status quo (parte divina presa na matéria); mas através da gnose, ou seja, uma iluminação e conhecimento infuso, se conhecem os meios para enganar tais elementos que impedem o retorno. Tudo aquilo que é matéria é ruim e deve ser superado por isto também propõe uma ascese rígida.

Montanismo
            Montano nasceu na Frígia (Ásia Menor) em 155-160 d.C. e junto com duas profetisas Maximila e Priscila iniciou a sua pregação. Depois da sua conversão ao cristianismo sentiu-se não só o porta-voz do Espírito Santo mas a sua encarnação.
            A essência deste movimento é o anúncio da eminência do fim do mundo que Maximila prognosticou para logo depois da sua morte. As várias guerras começadas no governo de Marco Aurélio e a difusão da peste acontecida logo depois foram interpretadas como sinais premonitórios do final do mundo. Em vista disto é prescrita uma moral rigorosamente ascética, como a proibição do matrimônio (mais tarde aplacado com a obrigação da monogamia, que excluía um segundo matrimônio) e a prescrição de jejuns severos e consistentes esmolas. O martírio é encorajado e proibido escapar das perseguições. A nova Jerusalém da qual fala o Apocalipse se localiza na Frígia. Os crentes deverão estar no lugar indicado no momento na chegada do Senhor.
            A dogmática da seita permanece ortodoxa; o movimento em substância não se interessa pelas questões teológicas, mas se inspira nas antigas tradições proféticas e apocalípticas. O que provocou a condenação de Montano foi o fato de questionar a autoridade dos bispos, pois com a pretensão de que nele e por ele falava o Espírito Santo tinha-se como superior a própria autoridade dos bispos e das Escrituras.
            O movimento montanista não ficou restrito a Frígia, conseguiu seguidores no Oriente e no Ocidente. Pela sua proposta de retorno as origens cristãs, a crítica a Igreja episcopal urbana e pelo seu rigorismo moral deram ao movimento muita popularidade principalmente entre as classes mais baixas. Um dos seus seguidores mais famosos foi Tertuliano. O montanismo foi condenado por vários sínodos do final do século II. Mas a sua última condenação foi no final do século VII no Concílio de Constantinopla (VI Concílio Ecumênico).


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