segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A CRISE DA DOUTRINA TRADICIONAL

A CRISE DA DOUTRINA TRADICIONAL

            No confronto com a realidade a tese tradicional entrou em crise. Enquanto permanecia a concepção solidária, podia se aceitar que inocentes pagassem junto com os culpados, mas com a entrada da visão da responsabilidade pessoal, a correspondência entre o princípio e a realidade não é mais sustentável.
            Em Jeremias a crise é apresentada como pergunta angustiante (12,1; 15,10-18;20,8; cfr.  Hab 1,13; Ml 3,14s). A mesma inquietação está presente em alguns salmos (6,4; 10,1; 13,1-3; 74,10; 94,3). A solução é buscada na intervenção divina que desvela o caráter efêmero da prosperidade dos pecadores (Sl 6,9-11; 10,17s; 37; Hab 2,1-4; Ml 3,17s). Por sua parte, o justo goza de paz interior (Sl 94,18s) na certeza que os ímpios serão punidos (Sl 38, 12-18; 94, 22s). Contudo é no livro de Jó e no Eclesiastes que a crítica vai se tornar devastadora, pondo fim à tese tradicional.
            protesta furiosamente contra suas calamidades, contesta com furor a concepção de um deus e de uma existência que resultam incompreensíveis. Enquanto o prólogo e o epílogo mantêm a visão tradicional, o poema constitui a mais violenta requisitória  contra o princípio da retribuição.
            O que em Jó era uma apaixonada explosão de rebeldia contra as soluções convencionais, no livro do  Eclesiastes se torna  um sereno e corrosivo ceticismo e uma ironia desencantada. Jó acreditava na felicidade, mas agora também isso é vaidade, assim como a sabedoria. A vaidade é a ausência de valores, que faz com que a vida não tenha sentido. A única coisa a se fazer é viver enquanto dá, desfrutando dos bens da vida como dons de Deus.

            Com os dois citados livros, o problema da retribuição chega a um ponto morto. Feita a crítica à solução tradicional, não aparece nenhuma perspectiva que possa satisfazer. Faz-se mister explorar outras vias, rumo ao que transcende o tempo presente. Apesar de ausente, Deus nunca é declarado inexistente, pelo contrário (Jó 19,25). A fé suporta a irracionalidade do mal. Da incompreensibilidade de Deus não se conclui a sua negação. A realidade de Deus é mais forte que a angustia e o ceticismo. A fé se baseara na vivência existencial da comunhão com Deus no tempo e na história, não na garantia de uma solução para o problema da retribuição. Deus tem sentido mesmo quando não traz alegria e segurança. Jó crê em Deus por Deus mesmo, sem nenhum apoio imanente, mesmo sem ter conseguido tirar Deus de seu mutismo.


5- PRIMEIROS PASSOS DE UMA SOLUÇÃO

            Em três salmos a meditação sobre a natureza da relação  Deus-homem alcança um altíssimo grau de exaltação religiosa. No salmo 16, 10-11 a comunhão com Javé é sentida como tão forte que o temor da morte parece superado, não por uma fé na ressurreição ou na imortalidade, mas porque a presença do Deus vivo relega a um plano secundário toda preocupação, inclusive com a morte. A presença é sentida com tal intensidade que não se vê como possa ser interrompida com a morte.
            No salmo 49, 16, enquanto o sheol será a residência dos pecadores, o salmista afirma que será tomado das garras do sheol. O verbo usado para tomar é ‘laqah’ (לקח), usado para Henoque e Elias (Gn 5,24; 2Rs 2,3ss), subtraídos ao desfecho comum da existência humana e assumidos por Deus junto dele. Enquanto os malvados correm para o sheol, a vida dos fiéis está assegurada por uma intervenção libertadora de Deus.
            O salmo 73 opõe ao bem-estar dos pecadores a felicidade fundada na comunhão com Deus. Nos versos 23-28 aparece de novo o verbo ‘laqah’ (Deus tomará consigo o fiel na hora da morte?) e se exprime a confiança ilimitada no caráter indissolúvel da união amorosa com Deus. Por que a morte teria mais poder do que esse amor indestrutível? Como poderia quebrar essa união tão firme?
            Os três salmos expressam a intuição da exigência de perenidade que a vida  com Deus outorga. Se a vida com Deus possui já agora uma densidade suficiente para plenificar a existência, tem sentido o pressentimento de que  há de transcender todo e qualquer condicionamento. O Deus fiel seria fiel até o fim se permitisse que a morte interrompesse o diálogo? Os três salmos dão testemunho de uma atitude nova, segundo a qual a esperança não vacila nem sequer diante da morte. Todavia, os salmos não nos fornecem uma concepção precisa, mas não irá passar muito tempo sem que se afirme a fé na ressurreição.

 6- A FÉ NA RESSURREIÇÃO

            Preparando essa fé temos alguns oráculos proféticos que adotam uma linguagem simbólica para afirmar o poder de Deus sobre a morte.
            Os 6, 1-3 afirma que Deus irá fazer seu povo reviver e se erguer: isso significa cura e alívio na enfermidade, ou ressurreição? Em todo o caso, trata-se da ressurreição do povo, sendo que Javé tem o poder de devolver a vida a um organismo morto.
            O impressionante  realismo com o qual Ez 31,1-14 descreve a reviviscência dos ossos ressequidos serve para afirmar o poder de Deus que faz o seu povo reviver após o exílio. Todavia, a fronteira entre a realidade e a imagem não é tão precisa, e o que era um recurso literário para exprimir plasticamente a volta do exílio abre a possibilidade que se atribua a Javé o poder e a vontade de restituir a vida também aos membros mortos do seu povo.
            As opiniões dos críticos se dividem quanto à interpretação de  Is 26, 19: profecia da restauração nacional ou primeiro anúncio formal de uma ressurreição dos indivíduos? Em todo o caso, o dinamismo das imagens orienta o pensamento para uma concepção realista da ressurreição.
            Com Is 52,13 e  53,10s temos um precedente já bem próximo dos textos capitais de Daniel e Macabeus. Para esses textos todos, a morte martirial será seguida de uma reabilitação. Contudo, em Isaias se trata ainda de um pressentimento que não dispõe da noção clara de um acontecimento.

            Todavia, é somente com o livro de Daniel que temos o primeiro testemunho categórico da fé na ressurreição, num contexto claramente escatológico: Dn 12, 2s.13. Mas, o que diz o texto exatamente: só uma parte dos judeus ressuscitará ou todos eles? Há ressurreição só para a vida, ou se deve falar de uma outra para a morte? Estes últimos não são os que não ressuscitam de fato? De qualquer modo, a ressurreição é afirmada certamente para os mártires, aqueles que caíram por causa da fé durante a perseguição de Antíoco Epífanes. Os maus irão perpetuar sua existência no sheol? Pelo jeito, no fim dos tempos (v.13) cada um será julgado segundo sua conduta.

            Alguns anos mais tarde, o segundo livro dos Macabeus apresenta uma visão semelhante. No capítulo 7  e no 12 trata-se da ressurreição dos mártires, ficando em suspenso o destino dos ímpios. Aqui também a ressurreição é no fim dos tempos.
            A naturalidade e concisão com que expressa, pela boca de uma mulher do povo (7, 22s.27-29) e de seus filhos (vs.9.11.14), a esperança da ressurreição, sem preocupação com explicações mais detalhadas, dá a entender que a idéia gozava então de uma ampla difusão.
            Todavia, a glosa de 12, 43-45 (cfr BJ), com seu indissimulado matiz polêmico, deixa transparecer que não todos os judeus assim pensavam. De fato, ainda no tempo de Jesus a seita dos saduceus se opunha tenazmente a essa fé.
            Portanto, é manifesta a importância transcendental dos textos examinados: achou-se uma resposta para o mistério da morte, porquanto se trate ainda de uma resposta controvertida e limitada: Deus ressuscitará aqueles que tiverem morrido pela honra de seu nome. Se Deus deixasse na morte aqueles que lhe são fiéis na vida e na morte, colocaria em questão a sua própria honra. Se assim não fosse, ou Deus não seria Deus, ou então não seria aliado do homem. A ressurreição é a única resposta que torna Deus alguém digno de crédito.  A ressurreição não é uma consideração abstrata, nem uma solução do problema da retribuição, mas resultado do conhecimento do Deus com o qual se conviveu pela fidelidade à sua Lei. A justiça e o amor de Deus são mais fortes do que a morte. A fé não nasce de um nostálgico desejo humano de imortalidade, mas da reflexão sobre o ser e os atributos do Deus da Aliança.



Nenhum comentário:

Postar um comentário