A CRISE DA DOUTRINA TRADICIONAL
No
confronto com a realidade a tese tradicional entrou em crise. Enquanto
permanecia a concepção solidária, podia se aceitar que inocentes pagassem junto
com os culpados, mas com a entrada da visão da responsabilidade pessoal, a
correspondência entre o princípio e a realidade não é mais sustentável.
Em
Jeremias a crise é apresentada como pergunta angustiante (12,1; 15,10-18;20,8;
cfr. Hab 1,13; Ml 3,14s). A mesma
inquietação está presente em alguns salmos (6,4; 10,1; 13,1-3; 74,10; 94,3). A
solução é buscada na intervenção divina que desvela o caráter efêmero da
prosperidade dos pecadores (Sl 6,9-11; 10,17s; 37; Hab 2,1-4; Ml 3,17s). Por
sua parte, o justo goza de paz interior (Sl 94,18s) na certeza que os ímpios
serão punidos (Sl 38, 12-18; 94, 22s). Contudo é no livro de Jó e no
Eclesiastes que a crítica vai se tornar devastadora, pondo fim à tese
tradicional.
Jó protesta furiosamente contra suas
calamidades, contesta com furor a concepção de um deus e de uma existência que
resultam incompreensíveis. Enquanto o prólogo e o epílogo mantêm a visão
tradicional, o poema constitui a mais violenta requisitória contra o princípio da retribuição.
O
que em Jó era uma apaixonada explosão de rebeldia contra as soluções
convencionais, no livro do Eclesiastes se torna um sereno e corrosivo ceticismo e uma ironia
desencantada. Jó acreditava na felicidade, mas agora também isso é vaidade,
assim como a sabedoria. A vaidade é a ausência de valores, que faz com que a
vida não tenha sentido. A única coisa a se fazer é viver enquanto dá,
desfrutando dos bens da vida como dons de Deus.
Com
os dois citados livros, o problema da retribuição chega a um ponto morto. Feita
a crítica à solução tradicional, não aparece nenhuma perspectiva que possa
satisfazer. Faz-se mister explorar outras vias, rumo ao que transcende o tempo
presente. Apesar de ausente, Deus nunca é declarado inexistente, pelo contrário
(Jó 19,25). A fé suporta a irracionalidade do mal. Da incompreensibilidade de
Deus não se conclui a sua negação. A realidade de Deus é mais forte que a
angustia e o ceticismo. A fé se baseara na vivência existencial da comunhão com
Deus no tempo e na história, não na garantia de uma solução para o problema da
retribuição. Deus tem sentido mesmo quando não traz alegria e segurança. Jó crê
em Deus por Deus mesmo, sem nenhum apoio imanente, mesmo sem ter conseguido
tirar Deus de seu mutismo.
5-
PRIMEIROS PASSOS DE UMA SOLUÇÃO
Em
três salmos a meditação sobre a natureza da relação Deus-homem alcança um altíssimo grau de
exaltação religiosa. No salmo 16, 10-11 a comunhão com Javé é sentida como tão
forte que o temor da morte parece superado, não por uma fé na ressurreição ou
na imortalidade, mas porque a presença do Deus vivo relega a um plano
secundário toda preocupação, inclusive com a morte. A presença é sentida com
tal intensidade que não se vê como possa ser interrompida com a morte.
No
salmo 49, 16, enquanto o sheol será
a residência dos pecadores, o salmista afirma que será tomado das garras do
sheol. O verbo usado para tomar é ‘laqah’ (לקח), usado para Henoque e Elias (Gn 5,24; 2Rs
2,3ss), subtraídos ao desfecho comum da existência humana e assumidos por Deus
junto dele. Enquanto os malvados correm para o sheol, a vida dos fiéis está
assegurada por uma intervenção libertadora de Deus.
O
salmo 73 opõe ao bem-estar dos
pecadores a felicidade fundada na comunhão com Deus. Nos versos 23-28 aparece
de novo o verbo ‘laqah’ (Deus tomará consigo o fiel na hora da morte?) e se
exprime a confiança ilimitada no caráter indissolúvel da união amorosa com
Deus. Por que a morte teria mais poder do que esse amor indestrutível? Como
poderia quebrar essa união tão firme?
Os
três salmos expressam a intuição da exigência de perenidade que a vida com Deus outorga. Se a vida com Deus possui
já agora uma densidade suficiente para plenificar a existência, tem sentido o
pressentimento de que há de transcender
todo e qualquer condicionamento. O Deus fiel seria fiel até o fim se permitisse
que a morte interrompesse o diálogo? Os três salmos dão testemunho de uma
atitude nova, segundo a qual a esperança não vacila nem sequer diante da morte.
Todavia, os salmos não nos fornecem uma concepção precisa, mas não irá passar
muito tempo sem que se afirme a fé na ressurreição.
6-
A FÉ NA RESSURREIÇÃO
Preparando essa fé temos alguns oráculos proféticos que
adotam uma linguagem simbólica para afirmar o poder de Deus sobre a morte.
Os 6, 1-3 afirma que Deus irá fazer seu
povo reviver e se erguer: isso significa cura e alívio na enfermidade, ou
ressurreição? Em todo o caso, trata-se da ressurreição do povo, sendo que Javé
tem o poder de devolver a vida a um organismo morto.
O
impressionante realismo com o qual Ez 31,1-14 descreve a reviviscência dos
ossos ressequidos serve para afirmar o poder de Deus que faz o seu povo reviver
após o exílio. Todavia, a fronteira entre a realidade e a imagem não é tão
precisa, e o que era um recurso literário para exprimir plasticamente a volta
do exílio abre a possibilidade que se atribua a Javé o poder e a vontade de
restituir a vida também aos membros mortos do seu povo.
As
opiniões dos críticos se dividem quanto à interpretação de Is 26,
19: profecia da restauração nacional ou primeiro anúncio formal de uma
ressurreição dos indivíduos? Em todo o caso, o dinamismo das imagens orienta o
pensamento para uma concepção realista da ressurreição.
Com
Is 52,13 e 53,10s temos um precedente
já bem próximo dos textos capitais de Daniel e Macabeus. Para esses textos
todos, a morte martirial será seguida de uma reabilitação. Contudo, em Isaias
se trata ainda de um pressentimento que não dispõe da noção clara de um
acontecimento.
Todavia,
é somente com o livro de Daniel que
temos o primeiro testemunho categórico da fé na ressurreição, num contexto
claramente escatológico: Dn 12, 2s.13. Mas, o que diz o texto exatamente: só
uma parte dos judeus ressuscitará ou todos eles? Há ressurreição só para a
vida, ou se deve falar de uma outra para a morte? Estes últimos não são os que
não ressuscitam de fato? De qualquer modo, a ressurreição é afirmada certamente
para os mártires, aqueles que caíram por causa da fé durante a perseguição de
Antíoco Epífanes. Os maus irão perpetuar sua existência no sheol? Pelo jeito,
no fim dos tempos (v.13) cada um será julgado segundo sua conduta.
Alguns
anos mais tarde, o segundo livro dos Macabeus
apresenta uma visão semelhante. No capítulo 7 e no 12 trata-se da ressurreição dos
mártires, ficando em suspenso o destino dos ímpios. Aqui também a ressurreição
é no fim dos tempos.
A
naturalidade e concisão com que expressa, pela boca de uma mulher do povo (7,
22s.27-29) e de seus filhos (vs.9.11.14), a esperança da ressurreição, sem
preocupação com explicações mais detalhadas, dá a entender que a idéia gozava
então de uma ampla difusão.
Todavia,
a glosa de 12, 43-45 (cfr BJ), com seu indissimulado matiz polêmico, deixa
transparecer que não todos os judeus assim pensavam. De fato, ainda no tempo de
Jesus a seita dos saduceus se opunha tenazmente a essa fé.
Portanto,
é manifesta a importância transcendental dos textos examinados: achou-se uma
resposta para o mistério da morte, porquanto se trate ainda de uma resposta
controvertida e limitada: Deus ressuscitará aqueles que tiverem morrido pela
honra de seu nome. Se Deus deixasse na morte aqueles que lhe são fiéis na vida
e na morte, colocaria em questão a sua própria honra. Se assim não fosse, ou
Deus não seria Deus, ou então não seria aliado do homem. A ressurreição é a
única resposta que torna Deus alguém digno de crédito. A ressurreição não é uma consideração
abstrata, nem uma solução do problema da retribuição, mas resultado do
conhecimento do Deus com o qual se conviveu pela fidelidade à sua Lei. A
justiça e o amor de Deus são mais fortes do que a morte. A fé não nasce de um
nostálgico desejo humano de imortalidade, mas da reflexão sobre o ser e os
atributos do Deus da Aliança.
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