sábado, 27 de fevereiro de 2016

O JUÍZO

O JUÍZO

            São dois os sentidos do termo juízo.

1- O juízo escatológico

            O hebraico ‘safat’ ( שׁפט ) significa tanto julgar como governar, pois no mundo antigo não havia distinção dos poderes, sendo que o rei legislava, dirigia e julgava. Quando Deus intervém na história, ele julga e governa, salva e condena. Mas seu juízo tem em vista sobretudo a salvação; é com intenção de salvar que ele julga, é para poder salvar que ele julga. As vitórias do povo de Deus são juízos de Deus (Jz 11,27; 2 Sm 18,31; Dt 33,21;etc.). Por isso, no Novo Testamento a vitória definitiva de Cristo sobre os poderes hostis é denominada juízo, realização do poder régio (Mt 25,31ss; Lc 10,18; 2 Ts 2,8; 1 Co 15, 24-28; etc.). Nesse âmbito, também os mandamentos do Deus legislador são chamados de julgamentos ( משׁפּט ):   Sl 119, 30.43.52.62.75.91.102108.120.149.160.
164.175.
            Quando a Igreja primitiva confessava a sua fé no Cristo venturus judicare o que ressoava no fundo desse artigo de fé era a mensagem reconfortante da graça vencedora, que leva a termo a iniciativa salvadora com uma intervenção que conclui e consuma os juízos de Deus, seus atos salvíficos que iam pontuando a história.
            Mais tarde, talvez sob a pressão da mentalidade forense latina, esta atitude esperançosa frente ao juízo de Deus como ato de salvação, irá ceder o terreno à idéia de um juízo como ato de decisão, como sentença jurídica. O Dies Domini se transformará no Dies irae. Essa mentalidade não espelha mais a confiança presente em 1 Jo 4,17s, mas a angústia e a insegurança diante de uma sentença incerta. A confiança e a esperança cederam o lugar ao moralismo de um comportamento absolutamente irrepreensível para escapar do juízo severo de Deus.

            A Parusia como juízo é a justificação da história ao revelá-la finalizada. A desconexão e a falta de sentido, as constantes contradições e os impulsos irracionais presentes na história, sua opacidade e ambigüidade, não nos levam a admitir a presença de um destino cego e absurdo, a assumirmos a postura de um determinismo fatalista ou de uma resignação desencantada, pois a Parusia faz justiça à história, dando um desfecho positivo ao devir. O Deus criador é o Deus que não deixa o mundo fugir de seus desígnios de sabedoria. O Cristo que julga é o Deus que vem justificar a história e o mundo em sua globalidade, não vem para justiçá-la dentro de um processo judicial. O juízo não é um contencioso judicial, mas o acabamento do sentido total que redime, sobrepujando com sua plenitude os sem-sentidos parciais.

2- O juízo-crise

Este juízo é a discriminação e a fixação da sorte definitiva de cada um de nós em decorrência de nosso comportamento ético-religioso. Ele tem lugar durante a existência terrena. A decisão respeito à sorte final depende do uso da liberdade pessoal, e não de uma sentença judicial emitida no último dia. No juízo, denominado tradicionalmente juízo particular, a pessoa é levada ao seu lugar não por um fator externo, mas por seu próprio peso. A Palavra de Deus constata e publica essa situação, não a constitui.
Rm 8, 31-34: “...Quem não poupou seu próprio Filho...como não haverá de nos            agraciar..? Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem justifica. Quem             condenará? Cristo Jesus...morreu...ressuscitou...intercede por nós?”.
Jo 3, 17-19: “Deus não enviou seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja  salvo por Ele. Quem nele crê, não é condenado; quem não crê,  já está condenado...”
Jo 5,24:       “...quem escuta a minha palavra e crê..., tem a vida eterna e não vem a juízo..”
Jo 12, 47-48:  Cristo não julga, pois o juízo se dá na não aceitação de sua palavra.
Mt 25, 31ss: o rei se limita a constatar que uns são benditos e outros malditos. Ao chegarmos ao ato final a sorte já foi lançada.
Para João o decisivo é a fé, para Mateus é a caridade. Para ambos o juízo depende da posição assumida diante de Cristo ou frente ao sacramento de Cristo, o próximo. Fé e amor se completam. Para sermos reconhecidos pelo Cristo futuro, é preciso reconhecer já agora o Cristo presente nos outros. A epifania do Cristo glorioso verifica sua identidade com o Jesus servo, identificado por sua vez com os menores. Crentes são os que selaram sua fé com obras de amor. Se Deus não foi reconhecido em sua debilidade histórica, não será acolhido em seu poder.

No fundo, somos julgados não pelo confronto com uma norma impessoal, mas pelo confronto com a imagem de Cristo. Ele, o homem por antonomásia, é a medida de toda genuína humanidade. Viver responsavelmente cada hora como hora da decisão pela permanente confrontação com a presença interpelante do Senhor. A perspectiva do juízo dá à responsabilidade seu último fundamento; sem isso, é fácil entender a liberdade como irresponsabilidade.



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