A graça na atualidade
(Cf. Boff, 13-46, 60-85, 115-131; Miranda, 9-22)
1- A experiência humana da gratuidade
Trata-se de fator fundamental para a
constituição e para a atualidade do conceito cristão de graça. A análise dessa
experiência inclui vários aspectos essenciais:
- o dom, como expressão de
bondade e de amor e a contrapartida da acolhida, confiança e docilidade;
- a gratuidade,
não no sentido de infundado, arbitrário, caprichoso ou expressão de
favoritismo, mas no sentido de natural, espontâneo, desinteressado.
Gratuito não se opõe a feito com interesse, mas a feito por interesse,
manipulando ou instrumen-talizando o dom ou o destinatário. O doador toma a iniciativa,
dá o primeiro passo, sai ao encontro, esperando encontrar abertura e
disponibilidade. Graça ou de graça é o dom feito a alguém só para agradar ou
para mostrar que o outro é agradável, não, porém, por causa da dignidade ou da
posição dele ou por causa de sua capacidade de corresponder, embora tanto a
dignidade seja reconhecida, como a correspondência desejada;
- a generosidade,
liberalidade, abundância, liberdade, por oposição a tudo o que é mesquinho,
calculado, medido (cf. Lc 6.38: uma medida calcada,
sacudida e transbordante);
- o gratuito
supõe ou cria encanto, atração, fascínio; é associado ao que dá satisfação,
prazer (não o meramente sensível ou sensual !); produz sensação de plenitude e
de enlevo. Pelo dom, o destinatário é valorizado e promovido. O gratuito ou
gracioso não é exatamente o "gratificante", que indica o que preenche
expectativas e necessidades subjetivas.
O dom gratuito as
supera e ergue a pessoa a um nível superior de vida. Portanto, a graça supera
não só quantitativamente, mas qualitativamente as expectativas humanas.
Muitos raciocínios e decisões humanas
se situam no nível dos direitos e deveres ou do obrigatório e livre. O conceito
de gratuidade, como é assimilado pela graça cristã, se situa em um nível
superior, que não ignora os binômios citados, mas os transcende.
2- "Graça" na linguagem corrente
A linguagem corrente e a conversação
quotidiana exprimem, de maneira vaga e confusa, a experiência da gratuidade,
pois as pessoas a possuem em graus e formas diferentes e são influenciadas por
muitos fatores, inclusive conflitantes, na hora de julgar um fato concreto. O
uso comum, religioso e cristão, desgastou e empobreceu demasiadamente o termo,
embora ele ainda conserve um sentido rico e positivo:
- uso profano (em parte vem do
grego e do latim e da experiência humana da gratuidade, em parte trata-se do
sentido cristão secularizado): encanto, fascínio; facilidade natural e
momentânea para realizar algo (o que é imprevisível e fora de regra); o
‘engraçado’; favoritismo (o destinatário é induzido a expressões até de
submissão servil; cfr nota na p.16); paternalismo, que cria dependência;
- uso religioso comum: a graça é
concebida e visualizada como uma espécie de fluido, um raio (laser), uma
descarga elétrica; ou então como um tesouro, um capital, uma poupança a ser
acrescida, como algo que se identifica com o maravilhoso e o surpreendente ou,
enfim, como um auxílio (exterior e secundário), uma “força” para apoiar ou
corrigir alguma deficiência humana...
As razões dessa
secularização e degeneração são a falta de experiência da graça cristã e as
apresentações inautênticas da mesma, com exemplos e palavras.
3- A situação do homem contemporâneo em relação à graça
- Fenômenos culturais desfavoráveis:
secularismo, ateísmo, hedonismo, individualismo, empirismo,
pragmatismo, cientismo, antropocentrismo, capitalismo, globalização, neo-liberalismo,
consumismo; a influência da própria crise de identidade cristã e a percepção
clara (e exagerada) que o mundo tem dessa crise. É adequado falar de uma noite
epocal da fé ? (Rahner; cf. S.João da Cruz).
Podemos distinguir duas correntes:
- secularista:
- Deus está
ausente, silenciou, morreu ... para dar lugar ao homem, agora adulto;
- o homem é o único artífice da história. O mundo é do homem
e para o homem. Deus só pode existir porque e enquanto fundamenta e promove o
projeto feito e realizado pelo homem.
- socializante: a fé interessa porque e na medida em que luta
pela transformação das estruturas da sociedade.
- Fenômenos culturais favoráveis:
horror ao formalismo e à exterioridade;
valorização da espontaneidade; neces-sidade de superar o isolamento, pela
abertura ao outro; sentido comunitário e solidariedade social; cansaço da
sociedade competitiva; frustração do mito do progresso; crise das ideologias; crise
da confiança na ciência e na técnica, etc.
- Fenômenos aparentemente
favoráveis:
religiosidade pós-moderna, misticismo,
sede do sobrenatural, etc.
O homem se sente necessitado de
salvação, de ser favorecido por um amor superior, incondicional e abrangente, para superar o mal e
realizar-se, mas desconfia da religião e especialmente do cristianismo e mais
ainda da Igreja. Vivemos a pós-cristandade ou mesmo o pós- cristianismo?
Cf. MIRANDA, A salvação...13-17.27s.
obrigada pelo artigo
ResponderExcluir