segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A IGREJA E A QUESTÃO SOCIAL

A IGREJA E A QUESTÃO SOCIAL

a) As condições do proletariado nos primórdios do Século XIX

Dois fenômenos complementares caracterizam a vida técnica, econômica e social no decurso do século XIX e nos primórdios do século XX.
1. De primeira parte, assistimos a um crescimento industrial e comercial, primeiro nos países europeus, e mais tarde em todos os continentes;
2. De outra parte, só depois de vários decênios, é que levou a um aumento do bem estar geral e a uma elevação de vida de todas as classes. O nascimento das grandes indústrias que se verificou na Inglaterra, na França e na Bélgica, na Alemanha e na Itália, levou á concentração de imensas riquezas nas mãos de um restrito grupo de empresários.
Os operários são quase sempre oprimidos pela miséria e aviltados pelo trabalho desenvolvido em condições desumanas. Horários que, no início, chegaram a 14 e 17 horas, durante as quais o operário devia, via de regra, repetir mecanicamente o mesmo movimento; recrutamento indiscriminado de mulheres e crianças, até abaixo de 6 anos; falta de qualquer segurança diante de acidentes e doenças; salários apenas suficientes para manter só o operário, não a família; subalimentação, moradias insalubres e superlotadas nos aglomerados da cidade. Se forem duras as condições da classe operária, a sorte dos camponeses nos países ainda não industrializados não é melhor: a subnutrição multiplica as doenças, amontoam-se promiscuamente irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas.
A esse proletariado industrial e agrícola as classes dirigentes não sabem oferecer outro remédio senão a paciência e a resignação.

b) Gênesis da questão social: Liberalismo Econômico e Revolução Industrial

Dois fatores diferentes determinavam essa situação de exploração:
1. As grandes descobertas científicas e sua aplicação em grande escala em todos os setores da técnica, a começar da invenção da máquina a vapor no século XVIII.
2. As doutrinas econômicas defendidas desde o século XVIII por Adam Smith (1723-1790) e por David Ricardo (1772-1823). Essas doutrinas deram um estímulo e um encorajamento eficacíssimo para os empresários, justificando sua ambição e seu egoísmo.
 Podemos resumir em quatro passos essenciais essa doutrina do Liberalismo Econômico:
b.1) Amoralismo econômico: Considera a economia como completamente separada da moral e, portanto, do respeito pelo homem. Nessas perspectivas, vê as leis econômicas como relações necessárias de causa e efeito, em que não tem sentido falar de justo ou injusto.

b.2) A livre concorrência: no plano histórico, constitui a superação e a negação de todos os vínculos impostos à produção e ao mercado pela economia planificada dos Estados Absolutos, ou seja, pelo Mercantilismo e pelas velhas cooperações medievais, que subordinavam a atividade econômica apesar dos controles, muitas vezes inúteis e interessados. A livre concorrência favorece somente ao empresário. Quem paga a conta da livre concorrência são, em primeiro lugar, os operários, cujo salário o empresário, para reduzir custos de produção, tende a reduzir e cujo horário de trabalho tende a prolongar.

b.3) A não interferência do Estado[1]: O Estado ao intervir, faria uma obra inútil, prejudicial e injusta: inútil porque a natureza restabelece sozinha o equilíbrio; prejudicial, porque sobrepondo-se ás forças naturais, retardaria sua ação; injusta porque limitaria sem necessidade a liberdade dos indivíduos. O Estado não pode colocar leis entre empregador e empregados. Na Prússia, a primeira intervenção estatal em defesa das crianças e dos jovens empregados nas fabricas é de 1839; proíbe-se o trabalho das crianças com menos de 9 anos e limita-se a 10 horas o trabalho para  jovens de 9 a 14 anos. Na França, somente em 1841, é que se reduz há 8 horas o trabalho das crianças de 8 a 12 anos, e há doze horas o dos jovens de 12 a 16 anos.

b.4) Individualismo: Desvaloriza a função social da propriedade, levam as duas conseqüências imediatas: a proibição de todo contrato coletivo e de toda associação profissional. A jurisprudência liberal reivindica, por isso, uma absoluta liberdade nos contratos de trabalho. Todo acordo realizado entre empregador e trabalhador, e por este aceito, não viola a justiça e deve ser respeitado, e o Estado não pode modificar.

c) As tentativas laicas: o Socialismo Utópico, o Sindicalismo e o Socialismo Científico (três correntes)

c.1) O Socialismo Utópico: São aqueles escritores dos primeiros decênios do século XIX que propuseram uma solução da questão social fundamentada quase que exclusivamente em teorias abstratas, concebidas e desenvolvidas idealmente. Podemos distinguir três tendências:
c.1.1) Sant-Simon (1760-1825): Propôs a coletivização dos meios de produção e seu controle por parte dos poderes públicos;
c.1.2) Fourier (1772-1837): Ao contrário, opondo-se à centralização sonhada por Sant-Simon, sugeriu a formação de sociedades autônomas chamadas filanstérios, nos quais cada qual encontraria um trabalho adequado e poria à disposição da comunidade os frutos conseguidos.
c.1.3) Pierre Proudon (1809-1865): Com uma violenta polêmica que o contrapôs até a Marx, sustentou que “ propriedade é um furto” a menos que seja fruto do próprio trabalho. Ele sonhou a abolição do dinheiro como “valor”, porque o único valor é o trabalho. Todos haveriam de ter a mesma dignidade e a mesma riqueza.

c.2) O Sindicalismo[2]: O movimento sindical nasce nos primeiros anos do século XIX, na Inglaterra, onde a Revolução Industrial se antecipava em relação aos outros países, e constitui a natural reação ao isolamento em que tinham caído os operários após a abolição das velhas associações profissionais.
Pouco a pouco esses sindicatos foram sendo aceitos pelos estranhos até ganhar um reconhecimento jurídico no final do século XIX. A responsabilidade dos sindicatos será: regular os contratos de trabalho e estabelecer quando necessário à greve.

c.3) O Socialismo Científico: Essa corrente escolheu decididamente a ação política. Em 1848, é publicado em Londres, em Alemão, o manifesto do Partido Comunista. Nesse manifesto, Marx e Engels delineiam uma história da humanidade segundo o esquema da luta de classes, que na Idade Moderna, justamente pelo sucesso da burguesia com o desenvolvimento industrial a concentração do capital e o aumento do proletariado tornam-se exacerbada levando fatalmente à supressão da propriedade privada, socialização do capital, a abolição da família, da pátria e da nacionalidade. “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

A contribuição essencial de Marx no Manifesto:
1) A consciência de classe do mundo operário em bases econômicas;
2) A internacionalização do movimento;
3) A escolha deliberada da revolução.
Pela influência de Marx, surgiram no final do século XIX e início do século XX, vários partidos socialistas dos diversos países europeus. Na Alemanha, o socialismo se organiza em partido, em 1869. Na França, o partido surge em 1879. Na Itália em 1882, nasce o Partido Operário Italiano, o qual, depois de ter dado origem em 1891, ao Partido dos Trabalhadores Italianos, transforma-se em 1892, em Partido Socialista Italiano.
Nesse período o sindicalismo vai conseguir as suas reivindicações: para os operários redução do horário de trabalho, descanso semanal e dominical; férias pagas e previdência. Irão conseguir porque se somou a eles os partidos do marxismo que se coloca abertamente contra o Regime Burguês, porém vai distanciar a classe operária da Igreja[3].
Nos outros países, ao contrário, o portal socialista foi um dos fatores iniciais para a melhoria das condições das classes trabalhadoras, sobretudo nos Estados onde por diversos motivos históricos os católicos estavam ainda ausentes da luta política.

5.2. O lento despertar dos católicos diante dos problemas sociais

Enquanto os liberais demonstraram ser solícitos defensores do “status quo” e os socialistas do partido e sindicatos se organizavam em vista de uma total reviravolta das estruturas existentes, que atitude teve a Igreja, ou seja, o laicato católico e a hierarquia eclesiástica?
Os católicos somente com certa demora tomavam consciência da questão social. Entre eles se desenvolveram duas tendências às quais persistiram uma ao lado da outra por mais de um século.
a) De um lado encontramos os católicos que exaltam à resignação, à paciência, à aceitação da pobreza, ao reconhecimento de seu valor religioso, acompanhado de uma ação limitada estritamente ao plano caritativo, ou seja, que exclui todo reconhecimento de um direito por parte do operário e rejeita como subversivo qualquer tentativa de modificar as estruturas burguesas, capitalistas e liberais.
b) Do outro lado os católicos que a um lento amadurecimento que leva da consciência caritativo-assistencial a uma ação fortemente impregnada de paternalismo, depois, gradualmente e não sem dificuldade chega ao reconhecimento dos direitos do operário e a aceitação da defesa coletiva desses direitos. “O operário tem direito a sindicato”.

a) A primeira tendência à linha conservadora
Os atos do magistério pontifício, as obras científicas e os opúsculos apologéticos, refletem bastantemente essa mentalidade e se preocupam por muito tempo, sobretudo de três coisas:
1°) Defender o direito de propriedade;
2°) Condenar em bloco sem um exame cuidadoso as obras e autores das teses do socialismo e do comunismo;
3°) Exorta os pobres à paciência e à resignação.
A condenação do comunismo e do socialismo aparece, desde 1846, na Encíclica “Qui Pluribus” na qual Pio IX traça algumas linhas fundamentais do Programa que se propunha realizar, e é reafirmada na “Quanta Cura” e no “Syllabus” de 1864. A Encíclica de Pio IX critica fortemente também o amoralismo econômico e a negação de todo direito natural.
Leão XIII segue a linha de Pio IX com dois documentos: “Quod Apostolici Muneris” de 1878 e “Auspicato Concessum” de 1884. No primeiro documento Leão XIII condena o socialismo, reafirma o direito de propriedade e recomenda aos ricos que dêem aos pobres o supérfluo e aos pobres que freiem suas ambições e mantenham a ordem. No segundo documento aplica a neutralidade ou tendência de que a ordem das coisas devem ser mantidas, as mudanças radicais não são aceitas: “quem nasceu pobre é pobre; quem nasceu rico é rico”. Estes documentos expressão o pensamento da época.

b) A segunda tendência à linha propriamente social
Com essa mentalidade, delineia-se um comportamento profundamente diferente, dinâmico e construtivo. Podemos distinguir três fases em sua evolução:
1°) De 1833 até a morte de Pio IX em 1878;
2°) Os primeiros anos de Leão XIII, até a publicação da “Rerum Novarum” em 1891;
3°) Da “Rerum Novarum” aos nossos dias.
A primeira fase é a dos primórdios, das primeiras reflexões ainda insuficientes e das primeiras realizações, corajosas, mas limitadas ao plano caritativo-assistencial.
 A segunda trata-se das discussões fecundas sobre os fundamentos da assim chamada Doutrina Social Cristã, que começa a se classificar, e das tentativas ainda anacrônicas porque incapazes de superar o paternalismo e de reconhecer a plena igualdade humana das classes, bem como o direito do operário de se defender da opressão mediante a coalizão.
A terceira vê a maturação teórica e o nascimento de iniciativas eficazes, ainda que tardias, porque já decididamente alinhadas com a nova realidade histórica, com a aceitação do sindicalismo e da resistência operária ao Capitalismo.

b.1) O primeiro período até 1878 supera a linha conservadora
Até 1870 assistimos a várias iniciativas assistenciais e caritativas, inspiradas por um sentimento religioso totalmente desinteressado e realmente voltado para o alívio dos sofrimentos.
No plano prático, encontramos na França as Conferências de São Vicente de Paula, fundadas em Paris, em 1833, por Frederico Ozanam (1813-1853) e a Sociedade São Francisco Xavier, criada em 1840. Na Itália temos vária obras caritativas e assistenciais principalmente no Norte: Cotolengo inicia a congregação em 1827; depois temos os Oratórios e as Escolas Profissionais criadas por Dom Bosco desde os primeiros anos de seu sacerdócio, entre 1841 e 1845, depois temos Murialdo. Na Alemanha, encontramos as associações de aprendizes, que desde 1847, sob a direção de um sacerdote piedoso e competente, Aldolf Kolping, recentemente beatificado, tiveram logo um rápido desenvolvimento.
No plano teórico, não falta desde os primeiros anos dos séculos as denúncias contra o aviltamento da dignidade humana do operário por parte da indústria capitalista, a ambição desenfreada dos ricos, o escândalo dos baixos salários e da exagerada duração do trabalho e se concebe com lucidez que em última análise, tudo deriva do amoralismo econômico sistemático dos economistas liberais.
As exortações dos economistas católicos e dos Bispos mais inspirados não eram suficientes para frear os abusos e muito menos para provocar uma reforma das estruturas. Com maior preparação técnica, Charles de Coux, na “L’Avenir”, em 1831 e Lacordaire, Maret, Ozanam, em 1848, na “Era Nouvelle”, já traçam um programa que causa escândalo aos tradicionais e a Montalembert, e que Venillot julga uma indigna bajulação: legislação em defesa da infância, da doença, da velhice. A “Era Nouvelle” chega até a reconhecer o direito ao trabalho, o que para a burguesia parece uma loucura.
Importantes são os artigos sistemáticos dos jesuítas Curci, Liberatore, Taparelli D’Azeglio aprovados implicitamente pela Cúria Romana, logo nos primeiros anos da La Civiltá Cattólica. Esses artigos transpiram uma sincera simpatia pelo operário e começaram a publicar os princípios da solução da questão social: subordinação da economia amoral; função social da propriedade, intervenção estatal e associação profissional.
Repercussão maior teve os discursos[4] e as obras de Emanuel Von Ketteler, bispo de Mongúcia desde 1850. Estes discursos que mostram os sinais e as exigências do tempo têm grande importância para o desenvolvimento social: A Igreja tem o direito e o dever de intervir na questão moral, propõe uma atividade caritativa partindo da Igreja e não do Estado. Em 1869 não só vai reconhecer a validade de todos os postulares dos operários, vai reconhecer como válido: redução do horário de trabalho, aumento de salário, proteção as mulheres e aos jovens. Ketteler vai se eleger deputado tratando um programa social aberto a intervenção do Estado dando origem ao partido do Centro na Alemanha. Em 1864 inicia um projeto de cooperativa de produção que deveria se desenvolver com a colaboração dos fiéis. As iniciativas vêm da periferia, Roma não coloca obstáculos, mas não se manifesta.

b.2. O segundo período, até 1891: problemas e protagonistas
Este período que inicia com a morte de Pio IX vai até 1891 com a Encíclica “Rerum Novarum”.
Muitos católicos vão se dar conta da problemática, em especial um personagem chamado Gaspard Melliod que diz: “os verdadeiros responsáveis pela questão social são os ricos que passam com indiferença diante dos pobres”. A questão social começou a chamar atenção de um grupo cada vez maior dos católicos.
Nos anos 1870-1871 assistimos à primeira evolução: o movimento se intensifica. Na Áustria, as idéias de Ketteler foram retomadas e desenvolvidas pelo Barão Karl Van Vogelsang, um convertido que exerceu forte influência não só sob os católicos alemães, mas também sobre os franceses, através de La Tour du Pin, que o havia conhecido pessoalmente em Viena, em 1877. As teses de Haid escritas pelo barão, publicadas em 1883, resumiam o pensamento da Escola Austríaca orientada para o corporativismo. Na França, os elementos mais conservadores tinham seu porta-voz na Escola de Angers, dirigida pelo Bispo Freppel. Na Bélgica, prevalecia ainda a tendência conservadora, ou seja, católico-liberal, defendida por Charles Périn, professor de economia política em Louvain. Na Itália tem-se um grupo chamado “Opera Dei Congressi” e desenvolveu-se também depois de 1889, não sem algum atrito, a “União Católica para os Estudos Sociais”, sob a presidência efetiva de um insigne sociólogo, professor na Universidade de Pizza, Giuseppe Toniolo. Em Roma, o padre Liberatore, publicava os seus “Elementos de Economia Política” (1889) sob o estímulo de Leão XIII.
Em 1864 tem-se nos Estados Unidos da América a “Associação dos Cavaleiros do Trabalho” aprovado pelo cardeal Gibrons.
Em torno do Mons. Gaspard na Suíça temos a União de Friburgo.
Enquanto se discutia vivamente sobre o esquema de corporação, fazia-se em alguns lugares as primeiras tentativas de uma associação só de operários (sindicatos). O exemplo veio primeiro da América, onde nasceu, em 1869, um primeiro esboço de sindicalismo cristão com os “Cavaleiros do Trabalho”. Na França, o sindicalismo cristão apresentou-se timidamente por volta de 1887; firmou-se na Bélgica com maior facilidade a partir de 1886, mesmo depois de movimentos operários que tinham mostrado a desconfiança dos trabalhadores em relação a toda forma de cooperativismo. O problema geral continuava, porém, ainda em aberto, sobretudo pela falta de posicionamento de Roma.
Não foi fácil chegar a um acordo com os católicos, para duas intervenções estatais. Com estreita conexão com o problema da intervenção estatal, vinha a questão do Salário, sobre o qual, em síntese, repetia-se o mesmo posicionamento: enquanto uns afirmavam que o salário era determinado pela Lei da Oferta e da Procura, pela utilidade produzida, outros retrucavam que o salário mínimo deve levar em conta as exigências do operário e da sua família e a alguns chegavam a incluir no salário inclusive a proteção contra acidentes e para a velhice.



[1] Absentismo Estatal.
[2] O Sindicalismo não era aceito pelos patrões.
[3] Esta classe se auto proclama ateia.
[4] Estes discursos foram proferidos em 1848 na catedral de Mongúcia.

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