sábado, 27 de fevereiro de 2016

O TERMO GRAÇA NOS SINOTICOS


A prática e a experiência de Jesus
(Cf. Miranda, 25-29, 59-63; Barbé, 103s; apostila de Cristologia)

A teologia tradicional partia de Paulo e de João, que elaboraram a primeira reflexão teológica sobre a graça e o uso explícito do vocabulário. Atualmente partimos dos Sinóticos, onde se registra a plena revelação da realidade da graça qual resumo de toda a vida de Jesus e realização das promessas.

A prática de Jesus
O que surpreendeu os ouvintes:
- os milagres: sobre os elementos naturais, curas e exorcismos;
- o falar com autoridade, em nome próprio;
- o perdão dos pecados, concedido imediatamente;
- a familiaridade com os pecadores e marginalizados;
- a liberdade diante da Lei e das tradições.
O que gostariam de ter visto e não viram:
- o legalismo;
- o messianismo político, ou mesmo militar;
- o castigo para os pecadores (escatologia iminente).
Em que Jesus era diferente de João Batista:
- vai aonde o povo se encontra, não o chama a si no deserto;
- simplicidade de vida (não austeridade) e mansidão;
- vai até os pobres e ao povo comum, não enfrenta os poderosos;
- não pratica o batismo, mas pede fé e seguimento, uma relação pessoal viva.
Toda essa prática de Jesus é entendida como graça, termo que indica tudo o que é novo e original em Jesus. Deus sempre agiu assim, mas a religiosidade da época havia deturpado a compreensão do agir de Deus exatamente nesse aspecto.

A explicação de Jesus: como ele justifica o seu proceder.

Jesus tem seu próprio conceito sobre o Reino de Deus. Esse é o grande tema central da sua pregação e atuação (Mc 1,15; Mt 4,17; Lc 4,43), e não o messianismo, a Igreja ou mesmo a graça. Também o Batista pregou o Reino (Mt 3,2), mas outras são suas características.
Para Jesus, o Reino já é presente (não iminente), de um modo escondido e humilde (não vistoso e glorioso); é a grande oportunidade em que Deus oferece todo o seu amor (não o momento de cobrar, punir ou recompensar); depende, também, do homem que acolhe a ação de Deus e não se limita a esperar, mas faz o Reino acontecer; que não se converte apenas moralmente, mas, sobretudo, alcança a capacidade de enxergar o Reino presente nas ações de Jesus.
A justificação de Jesus aparece, especialmente, nas parábolas do Reino e da misericórdia. Jesus deve ser como o Pai é: um Deus que quer demonstrar mais amor do que nunca, para conseguir mais amor. Jesus mostra o amor gratuito e gracioso do Pai, que privilegia quem mais precisa; mas esse amor só pode ser acolhido por quem é capaz de aceitar tudo como um dom e não como uma recompensa (Mt 11,25-28).

A experiência de Jesus

É a razão da prática e o conteúdo da explicação de Jesus: é a experiência da relação pessoal com Deus, como Pai que ama gratuitamente (gera), querendo só demonstrar o seu favor, desejando que se ame como ele. Deus é sempre chamado de Pai, não de Rei, apesar de o tema central de Jesus ser o Reino de Deus.
O centro vital de Jesus não está na Lei, mas no sentir-se Filho. Jesus não veio para ensinar doutrinas e comportamentos: ele revela o Pai, de cujo reconhecimento e aceitação irá derivar o comportamento adequado. O objetivo da Lei era proporcionar o conhecimento de Deus. Jesus possui e comunica um conhecimento superior, não adquirido pela Lei, mas pela intimidade com o Pai, porque ele é seu Filho, o Filho.

O preceito e o projeto de Jesus

Imitar ou seguir Jesus é ter a mesma prática dele, porque se adotou o mesmo projeto e a mesma causa e se fez a mesma experiência. O preceito é amar o inimigo, o próximo e o irmão. O projeto é que todos sejam um, como o Pai e o Filho são um (Jo 17). O seguimento de Jesus é o pro-seguimento de sua causa.
            A Igreja é a comunidade onde isto já se realiza parcialmente, por causa de Jesus e com ele. Por ser realização inicial, mas em ligação com Jesus, a Igreja é sinal e sacramento da unidade de todo o gênero humano.

* * *

A teologia da graça a partir da prática da Igreja, especialmente na América Latina
(Cf. Boff, 42s, 86-111; Miranda, 18; Barbé)

A Igreja, mesmo como comunidade local historicamente situada, continua a encarnação de Jesus, é o seu corpo. A experiência, a prática e o projeto de Jesus continuam na experiência, na prática e no projeto da Igreja. Tornam-se mais evidentes onde sua finalidade é realizada ou conscientemente assumida como prioridade. A finalidade é a comunhão entre os irmãos e o espírito missionário, que amplia o número destes irmãos. Vários tipos de comunidade podem encarnar esta prática.
A prática a partir da qual se deveria poder elaborar o tratado da graça se torna visível na atividade pastoral, nas celebrações, na vida e no testemunho dos santos (não só os canonizados!), nas instituições, no tipo de relacionamento entre os cristãos, na ação desenvolvida no mundo, enfim, nos lugares e nas expressões da experiência da graça.
Mas, tudo isso só poderá ser retamente interpretado se a prática da comunidade for continuamente confrontada com a prática de Jesus e com a compreensão da Igreja desta prática.
Há experiências humanas que são comuns a todos os tempos: a dificuldade em praticar o bem, o sofrimento injusto, a força do mal, as desavenças entre as pessoas, etc. A teologia da graça sempre teve presente os problemas existenciais religiosos do homem na vivência da fé.
Na América Latina, a Igreja vivencia a experiência do processo de libertação de um modo específico, embora haja outras maneiras de viver, tematizar, conceituar e exprimir o processo de libertação. Esta experiência e compreensão é ponto de referência para uma teologia da graça.

Para aonde e para o que se dirige o processo de libertação?
-
para a comunhão trinitária, estendida e participada aos homens, reali-zada neles; expressa como serviço, participação, partilha;
-
para a liberdade de ser como Deus quer, de pôr em ação o seu plano, de poder fazer o que Deus quer, o que a ele agrada.

De onde parte o processo de libertação? Libertação do que?
Libertação do pecado, no sentido amplo e completo. Só se tem noção do pecado quando se tem uma visão clara do objetivo: o pecado é o que se opõe à meta. Não é simplesmente ofensa a Deus ou desobediência; não se trata apenas do pecado mortal, matéria de confissão. Só se entende o que é pecado na perspectiva da finalidade.
Pecado é tudo o que não cria a comunhão entre os homens, o que a nega, rejeita, dificulta, o que tem o efeito contrário. É pecado o que tira a liberdade de fazer o que Deus quer, o que cria e mantém estruturas e situações que impossibilitam a atuação e a expressão da comunhão, da liberdade de querer o que Deus quer.


Na América Latina como um todo, o que mais se opõe ao querer de Deus é a opressão e a exclusão, que geram pobreza e miséria, desfigurando o pobre. O pecado não está tanto na má distribuição dos bens materiais, ou na impossibilidade de se garantir a todos as necessidades básicas da vida, mas no fato de que isso acontece porque os homens rejeitam o projeto de Jesus. O mal está na falta de comunhão, não na falta de bens. A opressão impede de viver a comunhão para a qual o homem é feito. Os bens materiais e as conquistas dos homens não são valores absolutos, mas “pretexto” para unir as pessoas. O objetivo não é a auto-realização, mas ter o que partilhar e poder ser “um só”.

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