sábado, 27 de fevereiro de 2016

A PARUSIA, PÁSCOA DA CRIAÇÃO

A PARUSIA, PÁSCOA DA CRIAÇÃO

Quando proclamamos o Credo confessamos que o processo histórico no qual estamos inseridos culminará com um acontecimento salvador que  afetará a totalidade do real. Nesse ponto ómega da história o Cristo Senhor virá para consumar o que tinha sido iniciado com o ponto alpha ao qual se refere o primeiro artigo do Credo. Então a realidade criada alcançará sua cabal estatura. Então, toda a criação conhecerá a sua páscoa, a passagem da existência provisória para a definitiva. Foi para isso que o Cristo ressuscitou, colocando o germe do ‘eschaton’ na humanidade e no mundo que não podem não ser conduzidos para a consumação que foi desde então iniciada.


1 – OS DADOS DO NOVO TESTAMENTO

- A Parusia

Пαρουσία  ( do verbo πάρειμι, estar presente ou chegar) é empregado em grego tanto para referir-se à descida ou manifestação de pessoas divinas na terra, como para as visitas que reis e príncipes fazem nas cidades submetidas ao seu império. Em ambos os casos, trata-se de  uma manifestação triunfal, de uma exposição de poder  num clima solene, jubiloso e festivo. Na época imperial a parusia do César podia dar lugar a uma nova era, uma virada na história da cidade; o imperador era saudado como senhor e salvador. A visita era aguardada com ansiedade, pois se espera a concessão de benefícios excepcionais.
O termo é praticamente desconhecido no Antigo Testamento, nos LXX e no judaísmo (Contudo, cf. o tema da “visita de Deus” no AT). No Novo Testamento recorre 24 vezes para indicar em geral o advento glorioso de Cristo no fim dos tempos, mas também a manifestação de Satanás (2 Ts 2,9), ou a chegada de alguém esperado  (1Co 16,17; 2 Co 7,6s; 10,10).
A expressão é traduzida habitualmente com ‘vinda’, vinda de Cristo, segunda vinda, mas  essa vinda resume o que muitas vezes é explicitado nos textos: a ressurreição, o julgamento, o novo céu e a nova terra, a consumação gloriosa do Reino.

1 Ts 4, 13-18 constitui  a descrição mais direta e completa da Parusia quanto ao emprego dos  rasgos típicos da apocalíptica judaica. Mas é em 1Co 15 que é manifesta a inseparabilidade da Parusia com respeito aos demais elementos integrantes do ‘éschaton’: a vinda de Cristo (v.23), a ressurreição dos mortos (tema do capítulo), o julgamento que comporta a derrota dos inimigos (v.24-26), o fim (télos) do mundo presente (v.24) e a nova criação, quando Deus será tudo em todos (v.28).
Conexão da Parusia com o fim do mundo: Mt 24, 3.27.37.39; 1Ts 2,19; 3,13; 2 Ts 2, 1.8; 2 Pd 3, 4.12. Neste último o fim do mundo presente é seguido de uma nova criação.
Conexão entre Parusia e julgamento: 1 Ts 5,23; Tg 5,7s; 1 Jo 2,28.

- O Dia do Senhor

1Ts 5,2; 2 Ts 2,2; 1Co 5,5. Lemos variantes em 1 Co 1,8; 2 Co 1,14; Fl 1,10; 2,16. Simplesmente “O Dia’ em 1 Co 3,13; Rm 2,16; 2 Tm 1,18; 4,8.
A origem é evidente: trata-se de uma transposição cristológica de “O Dia de Javé” (Lc 17,24; Jo 8,56; cf. Am 5,18 BJ). É um claro sinal de continuidade da esperança do Antigo Testamento na novidade cristológica.
 A expressão acentua o aspecto do julgamento: 1Co, 8; 3,13; 5,5; Fl 1,10; 2,16; 2 Tm 1,8...; a  consumação da obra iniciada: Fl 1,6; 2 Tm 4,8...; a manifestação triunfal: Lc 17,24, digna de ser aguardada com gozosa expectação: 2 Co 1,14; Rm 13,12; Hb 10,25.

Temos nos Sinóticos uma variante da expressão: “A vinda do Filho do Homem”: Mc 13,26; 14,62; M 10,23; 16,27; 24,44; 25,31; Lc 12,40; 18,8. A origem em Dn 7 é evidente. Associada à expressão temos a idéia do julgamento, mas também  o caráter majestático da Vinda, enquanto manifestação de poder e glória, numa cenografia  com cortejo de anjos e nuvens.
Desses textos deduz-se também que não pode ter sido Paulo o introdutor do termo e da idéia da Parusia sob o influxo do helenismo, pois ambos  derivam da tradição pré-sinótica, até mesmo da fonte Q.

- Epifania, apocalipse, manifestação

O termo epifania (επιφάνεια: aparição, manifestação) é próprio das cartas pastorais, onde não encontramos o termo parusia. No helenismo trata-se de dois termos de significado e uso muito próximos. Epifania é usado para referir-se às manifestações das divindades pagãs, a personagens reais que se apresentam como revelação dessas divindades, ao imperador cultuado como senhor, deus, salvador e com o título de ‘epífanes’ (επίφανης). A epifania deste último pode ser reconhecida na data do nascimento, no começo do seu mandato imperial ou na visita a uma das suas cidades.
Nas cartas pastorais a epifania diz respeito indistintamente (e nisso é diferente de parusia) à primeira aparição histórica de Cristo, encarnação e subseqüente existência terrena (2 Tm 1,10; com a forma verbal no aoristo, επεφάνη: Tt 2,11; 3,4), ou a Vinda última (1 Tm 6,14; 2 Tm 4,1.8; Tt 2,13). Essa ambivalência do termo (clara em Tt 2, 11.13) constitui o pressuposto da distinção patrística a respeito da dupla vinda do Senhor, e insinua o caráter escatológico do tempo, do nascimento até a última manifestação.
A nota de expectativa gozosa continua sendo dominante, qualificada em Tt 2,13 de “feliz esperança”.
A continuidade entre ‘parusia’ e ‘epifania’ aparece claramente em 2 Ts 2,8 com o emprego dos dois termos. Já o grego dos LXX  designava freqüentemente como ‘epifania’ a teofania de Javé.

Os outros dois termos do título podem ser vistos como variantes de ‘epifania’: o substantivo αποκάλυψις (revelação) e o verbo φανερόω (manifestar-se). Apocalipse aparece em 1 Co 1,7 como objeto da esperança cristã, como sinônimo do dia do Senhor do v.8. O mesmo sentido em 1 Pd 1,7.13; 4,13; o verbo correspondente em 1 Pd 1,5; 5,1. Neste último o autor da carta se define como quem ‘participa da glória que está para revelar-se’, cuja existência terrena está impregnada pela esperança da glória da parusia.
O verbo ‘φανερόω’ associa Cristo ao discípulo: Cl 3,3s e 1 Jo 2,28; 3, 1-3  lembram a associação entre a manifestação do Cristo glorioso e a manifestação da graça do Espírito presente e atuante no coração dos discípulos.   Se o Cristo mantém sua presença escondida aos olhos do mundo, também a vida de Cristo está escondida no íntimo do discípulo. A manifestação gloriosa do Senhor irá provocar a revelação do Espírito no coração. Unidos no escondimento, unidos na glorificação.

- Existência cristã  e parusia

Na concepção original da fé cristã a comunidade vive irresistivelmente atraída pela esperança na realização do Reino pela vinda de Cristo. Essa gravitação escatológica impregna todas as manifestações vitais da Igreja.
A eucaristia é celebrada como memorial do Cristo ‘até que ele venha’ (1 Co 11,26; At 2,46), como é sugerido pelos relatos da instituição (Mt 26,29; Mc 14,25; Lc 22, 16-18). É provável que nesse culto ressoasse  o ‘marana tha’ (vem, Senhor) (1 Co 6,22; Ap 22,20). A celebração eucarística era vista como uma antecipação mística do Reino de Deus, pois nela se produz já algo do que será realidade permanente no fim dos tempos.  Como o Senhor veio na eucaristia, respondendo à oração sacramental, virá do mesmo modo no final da história, respondendo à invocação da Igreja que anela sua presença gloriosa e manifesta. O banquete eucarístico é antegozo do banquete das núpcias do Cordeiro. 

Na forma ‘maran atha’ (o Senhor vem) temos uma confissão de fé, mas dentro de um marco igualmente cultual. Em 1 Ts 1,9s aparece uma esperança que, além de ser objeto de fé, foi o motivo que convenceu os tessalonicenses a se converterem dos ídolos.

Na comunidade primitiva a ética tinha caráter escatológico. O comportamento do cristão no mundo é orientado pela esperança da Parusia (1Ts 5, 4-8; Rm 13,11-14). A esperança define a existência cristã: “convertidos para servir e esperar” (1Ts 1,9s), para “viver na espera” (Tt 2,11-13). Esperar é também estar preparado e preparar-se para a Vinda, pois é algo que é querido e não só conhecido. Nesse sentido é tudo o que se tem a fazer entre o batismo e a glória.
 Ora, a espera é longa e demorada, como também incerto o momento e incerta a circunstância. Daí podem surgir o tédio, o cansaço, o desconforto, o aborrecimento, a indiferença, o sono. Ora, manter viva a atitude de espera é vigiar (γρηγορέω: Mt 24,42s; 25,13s; 26,41 // Mc 14,38; 1Ts 5,6; 1Co 16,13; Ap 3,2.3; 16,15), estar desperto, atento, em prontidão, com o espírito lúcido para não afrouxar a tensão da espera. A vigilância vai unida à oração (Cl 4,2), exercício que mantém lúcida a consciência, alimenta a espera, ocupa a mente com a realidade que esperamos, e a sobriedade (1Ts 5, 6-8; Rm 13,13; 1Pd 5, 8), renúncia a tudo o que pode prender às satisfações do momento presente, fechando no benefício imediato, tornando pesada a alma por causa da intemperança, abafando a tensão para o futuro da promessa, cedendo ao desejo de se distrair durante a longa espera. Essa renúncia e sobriedade não são baseadas na maldade das coisas terrenas, nem na necessidade de reparar pecados, mas na atenção àquilo que se ama e que se quer que aconteça, porque se sabe que Deus prometeu e garantiu que vai acontecer.
Como o sono é próprio da noite e para enxergar precisamos da luz, então as obras da esperança são obras da luz e do dia (1Ts 5,4-8; Rm 13,11-14). Por outro lado, esperar o Dia é como a esperança do vigia que espera pela aurora (Sl 130, 6s; 37,9.34), noite iluminada pela lâmpada da fé (Mt  25, 1-13) e o pela caridade ativa (1Co 16, 13s; Rm 15,5-7).  

O perigo do afrouxamento da esperança pela demora e pelas sugestões contrárias do mundo impõe a necessidade da firmeza na fé, da perseverança e da coragem (At  14,22; 1Ts 3,8; 1 Co 15,58; 16,13; Ef 6,10; Cl 1,23; 2,7; Fl 4,1; 2Tm 1, 7s; 3,12; 1Pd 5, 8s).

A υπομονή (1Ts 1,3; 2Co 1,6; 6,4; 12,12; Rm 8,25; 12,12; 15,4.5; 2Tm  2, 9-13; Hb 10,32.36; 12,1.2.3.7; Tg 1,12; 5,11; Ap 1,9) indica a paciência, a constância, a persistência, a capacidade de suportação, a perseverança numa existência em tensão de espera demorada e acometida por perigos, pressões e assaltos dos que querem extinguir a chama da fé (Mc 13,13; Mt 10,22; 24,13: é a perseverança na luta, não na vitória já alcançada). Esse é o modo de se viver a cruz de Cristo (Hb 12,1-4). A perseverança é o imperativo que supõe o indicativo do Deus da esperança (2 Ts 3,5; Rm 15,5; Cl 1,11s; Fl 4,13). A ‘upomoné’ é tão típica da existência cristã, que com freqüência está associada à fé e à caridade, como um sinônimo da esperança (1Tm 6,11; 2Tm 3,10; Tt 2,2; Ap 2,19), ou com uma das duas. Temos aqui uma extensão do tema do permanecer em Cristo (μένειν) do evangelho de João.

A índole escatológica da ética cristã poderia favorecer um descomprometimento com o mundo. O texto de 1 Co 7, 29-31 parece ser um convite para abandonar as tarefas e deveres temporais. Assim foi entendido por alguns. Daí  a reação de  2Ts 3, 6-12 lembrando o dever do trabalho. Contudo, o que o trecho de coríntios quer inculcar é a relativização dos valores intra-mundanos,  uma libertação do peso das realidades presentes sem perspectiva de futuro maior.

A esperança inspira a alegria (1Ts 2,19; Rm 12,12; Fl 4,4s) e a certeza de participar da glória do Senhor (1Ts 1,3; 2 Ts 1,4-10; Rm 5,3-5; 8,18; 2 Co 3,1-7). 





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