segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A PROXIMIDADE DA PARUSIA

A PROXIMIDADE DA PARUSIA

            Eis uma questão das mais controvertidas e complicadas na exegese do Novo Testamento.

            - Jesus e a espera próxima da vinda do Reino.
           
            Jesus identificou-se com a figura do Filho do Homem e parece ter pensado a sua vinda para uma data próxima, imaginando um cumprimento dentro em breve do vaticínio de Dn 7. “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt 10,23c). “Estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o  Reino de Deus chegando com poder” (Mc 9,1). “Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (Mc 14,62; cf. Mc 13,28-30). Permanece o problema de como Jesus entendia essa proximidade no horizonte de sua concepção escatológica.
            A proximidade em questão não pode ser cronológica, mas deve ter outro sentido. Jesus pode ter se equivocado, condividindo a mentalidade comum em uma questão que Ele não precisava conhecer com clareza porque a solução não fazia parte de sua missão salvadora. Entretanto, mais do que um defeito de um conhecimento desnecessário, podemos conjeturar que ele se exprimisse numa outra concepção do tempo, como podia fazer a partir do mistério de sua personalidade única. De fato, nele mesmo, alpha e ómega, se alojava uma peculiar e absolutamente inédita vivência da proximidade atual entre a sua pessoa e o seu anúncio. Trata-se de uma proximidade não cronológica, mas ôntico-existencial. A experiência da proximidade pessoal se exprimia na linguagem deficiente da proximidade cronológica. Seu ser já estava de tal forma estruturado pelo ‘éschaton’ que se fundia com ele, como aparece na auto-designação de Filho do Homem.

            Uma consideração paralela olha não só para o aspecto qualitativo da personalidade de Jesus, mas também para a qualidade do próprio Reino de Deus. Se Jesus afirma sua próxima chegada, com isso Ele traduz a idéia de que esse Reino é pensado pelo Pai em correspondência ao seu desejo de introduzir o quanto antes a criação na comunhão de vida com Ele. Para isso é necessário que a humanidade assim queira. Deus, por sua parte, oferece o Reino que está próximo, isto é, ao alcance do homem, se ele quiser. O que por natureza está próximo depende do interesse do homem em realizar o que é próprio do Reino. Não o fazendo, o Reino retarda, mostrando Deus sua paciência com os pecadores, sua longanimidade e sua misericórdia, dando mais tempo para os homens.

            O Reino ainda pode ser considerado próximo no sentido de ser a etapa definitiva que inicia a consumação final, onde estão presentes embrionariamente todas as virtualidades que irão se manifestar no ‘éschaton’ da história econômica da salvação. Essa consumação, portanto, é realmente só questão de tempo, mas sua realização já está decidida e iniciada de maneira irreversível. O fim está próximo equivale, assim, a estar garantido, determinado de modo inevitável. Mesmo não concluído, o fim já começou, não estamos mais na preparação ou nos antecedentes do fim.

            Dito isso, devem ser ponderados textos nos quais o elemento cronológico desemboca numa singular elasticidade do tempo de espera. Jesus lembra que Deus pode tanto prolongar como abreviar esse tempo (Mt 24,22). Numa economia de graça e não de julgamento, Deus pode abreviar o tempo em benefício dos eleitos, como pode prolongá-lo para dar novas oportunidades para a conversão dos pecadores.  Junto à petição do “Venha o teu Reino”, o discípulo é exortado à paciência (Mc 13,7.13.21-23).

            Jesus  recusou-se a responder à pergunta – tão importante no clima apocalíptico da época – sobre a data da Parusia (Mc 13,32). Em Lc 17,20 não se trata tanto da previsão de uma data precisa, mas da possibilidade de perceber a vinda do Reino através de fenômenos claramente observáveis: “A vinda do Reino de Deus não é observável” = não vem de acordo com observações prognosticáveis (o substantivo ‘παρατήρησις’ era usado para a observação dos astros ou para o reconhecimento crítico de  fenômenos claramente identificáveis). Jesus não quer instruir sobre o fim iminente, mas quer lançar seu apelo dimensionado na perspectiva do fim, da realização plena do Reino. A opinião que Jesus podia ter em seu saber humano sobre a extensão do prazo não era uma definição autoritativa, pois a única autoridade por ele reconhecida nesse assunto era o Pai.
            Há textos que insistem na incerteza do momento da consumação do Reino (Mc 13, 33.35.37; Mt 24,42; 25,13; Lc 12,40), metaforicamente expressa com a imagem do ladrão que não envia aviso prévio (Mt 24,43; Lc 12,39). Daí que a atitude específica da comunidade escatológica é a vigilância sem desfalecimento (γρηγορέω) da qual decorre uma ética exigente e a postura de uma confiante e ardente expectativa (Mt 24,42; 25,13; 26,41 // Mc 14,38; Mc 13, 35.37; Lc 12,37). 



    

Concluindo, Jesus previu certamente um tempo intermédio entre a Páscoa e a Parusia. Para confirmação ulterior lembremos a formação dos discípulos, as instruções  sobre o comportamento deles no mundo, o envio missionário deles manifestam a consciência de Jesus a respeito de  um fim posterior à sua morte.Assim também as afirmações de Mc 2,19s e 14,7. Se o entretempo prolongou-se além do previsto por Jesus, a estrutura de sua concepção não fica por isso modificada.

- O problema na comunidade primitiva

Há três séries de textos a respeito de como a comunidade sentiu o problema:

a) A Parusia é esperado para logo (1Ts 4,15-17; 1Co 7,29;15, 51; Rm 13,11. Daí a fervorosa invocação do ‘maranatha’ (1 Co 16,22).

b) Relativização deliberada desse cálculo estimativo (1Ts 5, 1s.4; 2 Ts 2,2ss; 2 Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15). Note-se o uso freqüente da imagem do ladrão proveniente de Jesus.

c) O dado mais relevante é a presença do tema em textos tardios, quando não se podia mais esperar a Parusia dentro da primeira geração que já falecera. Surpreendentemente, a linguagem da proximidade não só não desaparece, mas é usada com toda a naturalidade e com freqüência.
A partir da carta aos Romanos Paulo, seguido dos outros,  não fala mais do fim dentro da sua geração, mas continua tratando da esperança da Parusia em termos de proximidade (Fl 4,5; 1 Tm 4,1; 2 Tm 3,1; Tt 2,12s; 1 Pd 4,7; Hb 10,25.37; Tg 5, 7-9; 1 Jo 2,18; Ap 1,1; 2,16; 6,11; 22,6s.20).

Portanto, a idéia da proximidade, plasmada em 1Ts, 1Co e Rm com um óbvio sentido de proximidade cronológica, sobrevive à pura cronologia e passa a ser categoria inseparável da mesma idéia da Parusia. Não é possível falar da Parusia a não se em termos de proximidade, e isso independentemente da extensão, maior ou menor, do lapso de tempo que ainda nos separa dela. Não é a quantidade do tempo que conta, mas a sua qualidade. O momento presente confina com o fim, está sob o cerco do fim, é, pois, iminente. O mero ínterim que ainda permanece, entre  o ainda não e o já,  não constitui mais uma distância real.
Além do mais, a pessoa esperada pela comunidade não é alguém ausente, mas sim bem presente no meio dela, na celebração eucarística, no rosto dos irmãos, na proclamação da Palavra. O esperado está próximo, não longe.

A comunidade teve que absorver a dilação da Parusia, esperada para a primeira geração cristã,  sem demonstrar absolutamente sinais de rejeição. 2 Pd 3 confirma que o alargamento, mesmo indefinido, do prazo de espera não acabou com a esperança parusíaca, pois esta se manteve viva. Nos textos citados não há o menor sinal de grave decepção por causa do adiamento (somente 2Pd 3 e talvez Jo 21,23 poderiam insinuar algo disso). Assim foi, porque o dado cronológico não pertencia à essência da esperança. De outra forma, a comunidade não teria sobrevivido à ruína do que teria representado sua convicção fundamental; muito menos teria sobrevivido sem renunciar nem à sua atitude de expectativa, nem a formular  tal atitude com a categoria da proximidade.
A adaptação não traumática às novas circunstâncias da espera foi possível porque a pregação escatológica de Jesus já subministrara recursos suficientes para efetuar com êxito tal operação, para reconverter a proximidade cronológica (quantitativa) em proximidade teológica (qualitativa) e trocar a dilação em dilatação do prazo. 

 “Vós sereis o meu povo; Eu serei vosso Deus”. Foi essa a célula geradora da promessa no Antigo Testamento: a mútua pertença entre Deus e o seu povo, a recíproca comunidade de vida. Pois bem, a encarnação do Filho de Deus cumpre esse propósito da maneira mais generosa possível, mas também da forma mais inesperada. Coerente com a peculiaridade única desse cumprimento surge um novo modo de compreender  o escatológico e um novo estilo de viver a esperança.
O acontecimento escatológico perfurou a história para enriquecê-la por dentro e pilotá-la até a meta. O ‘éschaton’ implanta-se com a encarnação, vida , mote e ressurreição de Jesus, e desenrola num arco temporal de duração indeterminada, mas que pode ser denominado ‘a última hora’, ‘os últimos dias’,  ‘o novo eon’, e se consuma com a Parusia do Senhor ressuscitado.



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