sábado, 27 de fevereiro de 2016

A GRAÇA NA ATUALIDADE

A graça na atualidade
(Cf. Boff, 13-46, 60-85, 115-131; Miranda, 9-22)

1- A experiência humana da gratuidade

Trata-se de fator fundamental para a constituição e para a atualidade do conceito cristão de graça. A análise dessa experiência inclui vários aspectos essenciais:

- o dom, como expressão de bondade e de amor e a contrapartida da acolhida, confiança e docilidade;

- a gratuidade, não no sentido de infundado, arbitrário, caprichoso ou expressão de favoritismo, mas no sentido de natural, espontâneo, desinteressado. Gratuito não se opõe a feito com interesse, mas a feito por interesse, manipulando ou instrumen-talizando o dom ou o destinatário. O doador toma a iniciativa, dá o primeiro passo, sai ao encontro, esperando encontrar abertura e disponibilidade. Graça ou de graça é o dom feito a alguém só para agradar ou para mostrar que o outro é agradável, não, porém, por causa da dignidade ou da posição dele ou por causa de sua capacidade de corresponder, embora tanto a dignidade seja reconhecida, como a correspondência desejada;

- a generosidade, liberalidade, abundância, liberdade, por oposição a tudo o que é mesquinho, calculado, medido (cf. Lc 6.38: uma medida calcada, sacudida e transbordante);

- o gratuito supõe ou cria encanto, atração, fascínio; é associado ao que dá satisfação, prazer (não o meramente sensível ou sensual !); produz sensação de plenitude e de enlevo. Pelo dom, o destinatário é valorizado e promovido. O gratuito ou gracioso não é exatamente o "gratificante", que indica o que preenche expectativas e necessidades subjetivas.
O dom gratuito as supera e ergue a pessoa a um nível superior de vida. Portanto, a graça supera não só quantitativamente, mas qualitativamente as expectativas humanas.
Muitos raciocínios e decisões humanas se situam no nível dos direitos e deveres ou do obrigatório e livre. O conceito de gratuidade, como é assimilado pela graça cristã, se situa em um nível superior, que não ignora os binômios citados, mas os transcende.

2- "Graça" na linguagem corrente

A linguagem corrente e a conversação quotidiana exprimem, de maneira vaga e confusa, a experiência da gratuidade, pois as pessoas a possuem em graus e formas diferentes e são influenciadas por muitos fatores, inclusive conflitantes, na hora de julgar um fato concreto. O uso comum, religioso e cristão, desgastou e empobreceu demasiadamente o termo, embora ele ainda conserve um sentido rico e positivo:

- uso profano (em parte vem do grego e do latim e da experiência humana da gratuidade, em parte trata-se do sentido cristão secularizado): encanto, fascínio; facilidade natural e momentânea para realizar algo (o que é imprevisível e fora de regra); o ‘engraçado’; favoritismo (o destinatário é induzido a expressões até de submissão servil; cfr nota na p.16); paternalismo, que cria dependência;
- uso religioso comum: a graça é concebida e visualizada como uma espécie de fluido, um raio (laser), uma descarga elétrica; ou então como um tesouro, um capital, uma poupança a ser acrescida, como algo que se identifica com o maravilhoso e o surpreendente ou, enfim, como um auxílio (exterior e secundário), uma “força” para apoiar ou corrigir alguma deficiência humana...

As razões dessa secularização e degeneração são a falta de experiência da graça cristã e as apresentações inautênticas da mesma, com exemplos e palavras.

3- A situação do homem contemporâneo em relação à graça

- Fenômenos culturais desfavoráveis:
secularismo, ateísmo, hedonismo, individualismo, empirismo, pragmatismo, cientismo, antropocentrismo, capitalismo, globalização, neo-liberalismo, consumismo; a influência da própria crise de identidade cristã e a percepção clara (e exagerada) que o mundo tem dessa crise. É adequado falar de uma noite epocal da fé ? (Rahner; cf. S.João da Cruz).
Podemos distinguir duas correntes:
- secularista:
- Deus está ausente, silenciou, morreu ... para dar lugar ao homem, agora adulto;
- o homem é o único artífice da história. O mundo é do homem e para o homem. Deus só pode existir porque e enquanto fundamenta e promove o projeto feito e realizado pelo homem.
                              - socializante: a fé interessa porque e na medida em que luta pela transformação das estruturas da sociedade.
- Fenômenos culturais favoráveis:
horror ao formalismo e à exterioridade; valorização da espontaneidade; neces-sidade de superar o isolamento, pela abertura ao outro; sentido comunitário e solidariedade social; cansaço da sociedade competitiva; frustração do mito do progresso; crise das ideologias; crise da confiança na ciência e na técnica, etc.
- Fenômenos aparentemente favoráveis:
religiosidade pós-moderna, misticismo, sede do sobrenatural, etc.


O homem se sente necessitado de salvação, de ser favorecido por um amor superior, incondicional  e abrangente, para superar o mal e realizar-se, mas desconfia da religião e especialmente do cristianismo e mais ainda da Igreja. Vivemos a pós-cristandade ou mesmo o pós- cristianismo? 

Cf. MIRANDA, A salvação...13-17.27s.

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