sábado, 27 de fevereiro de 2016

A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS

A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS

            A profissão de fé inicia-se com o “creio” e conclui com o “espero a ressurreição dos mortos”, eco amplificado do “ressuscitou dentre os mortos”, artigo da parte central do Credo. Como ponte entre os dois o “virá com glória” que estudamos no capítulo anterior. A Páscoa do Senhor e da criação é agora a Páscoa da ressurreição dos mortos.

1-    O Novo Testamento

No tempo de Jesus a fé na ressurreição, aquisição recente, ainda era objeto de disputas entre fariseus e saduceus: At 23,6-8; 24,14s.
Também o ensinamento de Jesus se dá em um contexto polêmico: Mc 12,18-27. Jesus argumenta a partir da Escritura (Ex 3,6) e da concepção que uma vida verdadeira deve ser uma vida encarnada. A ressurreição é afirmada também na geena: Mc 9, 43-47. Em Mt 12,41s // Lc 11,31s temos um aceno à ressurreição (verbos ‘anistemi’ e ‘egeiro’)?
No quarto evangelho as referências são mais densas e freqüentes. Jo 11,24 manifesta a ressurreição como fé do povo. 5,28s declara a ressurreição um fato universal, como ressurreição para a vida ou para o juízo (cfr At 24, 15). Jesus mesmo é a ressurreição e a vida (11, 25) e os que acolhem sua palavra viverão (5,25). Ser ressuscitado no último dia equivale a ‘não perder-se’, viver’, ‘ter a vida eterna’ (6, 39.40.44.54). Ressuscitar para a vida é resultado da participação da vida do Ressuscitado, comendo seu corpo e bebendo seu sangue (6,54). Assim, a crença comum na ressurreição recebe seu acabamento na motivação cristológica. A vida do Cristo ressuscitado, atualmente presente e operante nos fiéis, embora de maneira oculta, emerge como ressurreição final dos mortos.

Das cartas paulinas podemos destacar três textos.
1Ts 4,13-17. Aos tessalonicenses, preocupados com a sorte de seus parentes mortos depois da conversão, mas antes da Parusia julgada iminente, Paulo testemunha a certeza da participação de todos na vida plena de Cristo. Assim, estar aqui na terra no momento da Parusia não proporciona vantagens especiais. Todos irão participar solidariamente e simultaneamente da glória da Parusia. A vontade divina de ressuscitar Jesus engloba todos os que estão nele.
1Co 15. Na comunidade de Corinto alimentava-se, ao que parece, dois tipos de erros: alguns negavam simplesmente a ressurreição, atendo-se ainda a admitir só a imortalidade da alma, outros a reduziam a uma realização puramente espiritual, já presente  (como em 2Tm 2,18), especialmente na experiência dos carismas extraordinários.
Frente a isso, Paulo afirma: a) o caráter escatológico-futuro da ressurreição (v.20-28), b) a índole somática da existência ressuscitada (v.35-44), c) o cristocentrismo do fato (v.20s.45-49). Tudo isso para deixar claro que ou há ressurreição, ou não há salvação; e para que seja coerente a confissão da fidelidade de Deus às suas promessas.
a) A ressurreição é futura: por enquanto só Cristo ressuscitou, mas para que nós possamos ressuscitar quando a morte for abolida por ocasião da Parusia.
b) A ressurreição implica um corpo real, embora diferente do que temos agora, pela exclusão de tudo o que é negativo na existência presente. O corpo então será ‘espiritual’, ‘pneumático’, pura expressão do Espírito que dá  vida; trata-se de uma transformação de toda a pessoa. A fé na ressurreição implica uma dialética entre continuidade e ruptura, identidade e mutação qualitativa. O sujeito da existência ressuscitada é o mesmo sujeito de antes (v.53s: τουτο), mas não está do mesmo jeito, passou por uma transformação profunda e total dentro da mesma identidade pessoal.
c) O fundamento da ressurreição dos mortos é a  ressurreição de Cristo.  Os mortos ressuscitam porque Cristo ressuscitou, e Cristo ressuscitou exatamente para que os mortos pudessem ressuscitar. Cristo, causa eficiente da ressurreição, é também a causa exemplar: reproduzimos a partir dele o seu modo de ser ressuscitado. A ressurreição nos dá o último traço de uma processo existencial de contínua assimilação, conformação e transformação para, em, com Cristo. 1 Co 6 acrescenta mais um elemento: ressuscitamos como membros do corpo de Cristo ressuscitado (v.14s). A ressurreição tem um caráter corporativo, e não só corpóreo, constituindo a consumação do próprio Cristo. Sujeito da ressurreição é o corpo inteiro de Cristo, cabeça e membros. Só quando a humanidade ressuscitar Cristo estará completo.

2 Co 5, 1-5. Este texto confirma o exposto até agora. Paulo não adere a uma concepção desencarnada da salvação: o bem supremo não consiste em despojar-se do corpo. Seremos sobrevestidos e não desvestidos, sendo que o mortal é absorvido pela vida, não excluído. A esperança cristã mira à transformação do corpo, não à supressão libertadora dele.

* * *
Recapitulando: a ressurreição, para o Novo Testamento, é
- salvação do homem inteiro, não só da alma, salvação desencarnada;
- salvação da comunidade inteira, não só de indivíduos, salvação privatizada;
- salvação da criação inteira, não só do gênero humano, salvação desmundanizada.

A ressurreição no Novo Testamento é uma abreviação da salvação consumada. A ressurreição, como evento biológico que reanima um cadáver e o faz voltar à vida de antes, não interessava à fé cristã primitiva. A expectativa de uma Parusia iminente não só não excluía, como incluía a esperança de uma transformação do corpo, mesmo entre os que então estariam vivos. A esperança da Parusia compreendia a fé numa ressurreição qual evento eclesiológico articulado comunitariamente, cristificação de uma humanidade inserida na realidade mundana inteira.

2- Doutrina dos Padres e símbolos de fé      

            Os Padres tiveram que combater em dois frontes: contra a heterodoxia (docetismo, gnosticismo) e contra o paganismo, ao qual a idéia da ressurreição soava impossível e repugnante. São dois os aspectos da disputa: o fato mesmo da ressurreição e a identidade e consistência do corpo ressuscitado.

            Os apologistas usam o seguinte argumento: não se pode negar o possível em nome do real; o que hoje é real não o foi no passado e pôde então parecer impossível; a aparente impossibilidade de um fato pode ser desmentida pela onipotência divina. É assim que do sêmen nasce incompreensivelmente o ser humano (Justino).
            Os apologistas entendem a identidade do corpo ressuscitado como identidade da matéria corporal atual, que Deus convoca de novo para reconstituir o corpo tal qual era.
            Eles se opõem terminantemente às idéias que circulavam então sobre a metempsicose ou transmigração das almas. Insistem na unidade do ser humano como corpo e alma, reabilitando o corporal frente à comum desvalorização. Essa dupla preocupação levou a uma defesa vigorosa da identidade corporal de ma maneira demasiadamente simplista.
            Especialmente Irineu e Tertuliano combateram o gnosticismo ao ensinar que o objetivo da encarnação do Verbo foi precisamente a salvação da carne; se não fosse para esse fim, não haveria porquê o Verbo se encarnar. A ressurreição é possível para a onipotência divina, para a qual foi possível tirar o homem do limo da terra, pois foi mais difícil criar do que será difícil restabelecer o criado. Segundo Tertuliano, ao criar o primeiro homem Deus já previa a encarnação. Se Deus tivesse garantido somente a imortalidade da alma, teria deixado a salvação pela metade, teria salvado somente parte do homem. Toda a economia sacramental tem um caráter encarnado; portanto, “não pode ser separado no prêmio o que foi unido pela obra da salvação”.

            Orígenes se mostra crítico em relação aos apologistas. Ele considera insatisfatória a idéia de uma identidade material entre o corpo presente e o  futuro. Afirma que Deus ressuscita o corpo como corpo espiritual, não a carne (termo que designa a condição frágil presente). A identidade do corpo não pode se basear na identidade da mesma matéria, posto que nem sequer na existência terrena se dá tal continuidade: a nossa substância carnal de hoje não é a mesma de anos atrás. O que garante a identidade é a permanência da mesma figura (ειδος : será esta a estrutura interna pela qual identificamos um corpo como corpo humano?), não da mesma forma (μορφή: trata-se aqui da unidade das características materiais de um corpo individual?) e nem da mesma figura externa (σχήμα: será esta a aparência externa que muda com o tempo?).
            Contudo, Orígenes resvalou em outros aspectos da doutrina da ressurreição, ao propor um corpo de tal forma espiritual, que não se torna mais objeto dos sentidos: é invisível, intangível, sem peso, etc.
            A fé da Igreja na ressurreição é expressa nos símbolos mais antigos e nas profissões de fé dos concílios provinciais e ecumênicos. Esses inúmeros textos acompanham a fé eclesial com várias indicações mais precisas: A ressurreição é um fato:
            escatológico, se dá no último dia;
            universal, pois interessa a todos, não só os justos (sem com isso se pronunciar                                               sobre  a última geração por ocasião da Parusia);                                                                                                               
            que diz respeito à identidade somática, pois todos ressuscitarão com seus                                                        corpos: “nesta carne na qual agora vivemos” (DS 72).
            Em especial, o concílio de Toledo XI (DS 540) afirma uma identidade numérica, não só específica, isto é, a continuidade do corpo individual, não simplesmente a ressurreição com um corpo humano qualquer.
            Todavia, a fé não indica o que é necessário para que haja identidade numérica.

Cfr. DS 2. 10. 72. 76.190.200.462. 540.797. 801.859.1002;   LG 48.

3.- Reflexões teológicas

Perspectiva antropológica:  A fé na ressurreição é coerente com a visão unitária e não dualista do ser humano. O corpo faz parte integrante da identidade da pessoa. Deus criador quis o homem como homem, e não lhe deu um corpo somente para a fase que seria da formação do espírito, terminada a qual, o mero  meio é dispensado. O Deus criador quis o homem como valor absoluto e para sempre.
            Daí deriva o fato que também os ímpios ressuscitam, embora não pela ação do Espírito, mas pela comum ação criadora de Deus. O ato criativo de Deus é um ato eterno, mas que assume para nós no tempo a modalidade da ressurreição quando chega o último dia. Esse único ato tem efeito diferente, conforme a pessoa seja habitada e vivificada pelo Espírito ou não.

Perspectiva teológica: A ressurreição é o cumprimento definitivo de toda a história da Aliança que Deus livremente quis selar com a humanidade. Deus não é simplesmente “Aquele que nos tirou do Egito”, mas o “Deus que ressuscitou seu Filho dos mortos”.
            A fé na ressurreição não surgiu da pulsão psicológica de sobreviver, nem do instinto biológico de conservação; tais anseios deram lugar à idéia da imortalidade como negação da morte, não como afirmação da fidelidade de Deus que vence a morte.

Perspectiva cristológica: Deus nos ressuscita porque ressuscitou Cristo como cabeça.
Deus ressuscitou o Cristo para nos poder ressuscitar como seu corpo.
Deus nos dá o Espírito que ressuscitou Jesus para que realize em nós o que já realizou no Filho.
Em Cristo já ressuscitamos (Ef 2,6), pois temos o penhor do Espírito que inicia e antecipa na vida presente o que é próprio da futura. Jesus ressuscitou para ser o pioneiro que nos abre o caminho.
Já agora o nosso espaço foi invadido pela ressurreição de Cristo (Gl 2,20), a nossa fragilidade está envolvida pela sua força.
As propriedades do corpo ressuscitado são aquelas que Jesus manifestou após a sua ressurreição.
Jesus foi o único que venceu a morte: ele nos convence desse modo que vencerá a morte em cada um de nós.
A ressurreição no último dia é a expressão da solidariedade do corpo inteiro de Cristo.

O problema da identidade corporal.
           
A compreensão desta questão depende da concepção prévia sobre o que se entende por corpo: o que é o corpo, e de que modo ele é meu?
Como já ensinava Orígenes, a ressurreição não pode ser a restituição da mesma matéria bruta que pertenceu à pessoa durante a existência terrena. Não se trata de uma recuperação do cadáver.
            Temos que pleitear uma identidade numérica formal, não material. Essa visão só é possível tendo presente como espírito e matéria entram na formação da identidade pessoal de cada um. A matéria se torna corpo  humano ao ser apropriada, estruturada e configurada pela alma. Assim, para usar uma comparação, o mesmo alimento ingerido igualmente por várias pessoas, é assimilado segundo a estrutura vital própria de cada indivíduo. O corpo é sempre o meu e o mesmo, pois toda e qualquer matéria entra na composição dele pela ação configurante exercida pela alma. Por quanto a matéria cresça, diminua ou é transformada, faz parte do meu único corpo com sua figura inconfundível.
            Tendo isso presente, quaisquer que sejam as condições requeridas para que uma porção de matéria seja meu corpo, tais condições se cumprem na ressurreição. Sem cair em fáceis concordismos, poderia a ressurreição se dar refazendo o corpo individual com base simplesmente em uma seqüência de DNA.

            Qual o novo sentido do corpo ressuscitado? O que Deus pretende com o novo dom criador?
            Ressuscitar com o corpo significa recobrar a própria vida em todas as suas dimensões autenticamente humanas, sem nada perder do que agora constitui cada pessoa e a torna singular.
            A individualidade irrepetível de cada pessoa é significada, expressa e comunicada através do corpo, com seus gestos, expressões faciais, posturas e sobretudo pela palavra. Na vida presente, contudo, tal comunicação nunca é suficientemente clara e sem ambigüidades.Usamos máscaras, disfarces, nos esmeramos na arte da dissimulação, por desconfiança, insegurança, por conveniência ou por necessidade de defesa. Além disso, a pessoa nunca é inteiramente ela mesma, estando sempre em formação, podendo o provisório, passageiro e parcial ser entendido ou apresentado como definitivo e plenamente pessoal.
            Ressuscitar significa então não só ter um corpo vivo e perfeito, mas bem mais um corpo capaz de realizar e comunicar o que cada pessoa, já terminada a sua formação, realmente é. Esse corpo será então mais meu do que  nunca, supremamente comunicativo do meu eu verdadeiro. No corpo pneumático o eu irradia a vida do Espírito, livre de automatismos inconscientes vivendo a plenitude integral, que nasce do núcleo mais íntimo da pessoa e alcança e transfigura a corporeidade. Supera-se a antinomia entre ser e parecer. A diversidade do corpo ressuscitado, em relação ao corpo terrestre, consiste em adquirir a última e irrevogável identidade. Dá-se então a integração na pessoa de todas as dimensões da natureza, a personalização plena.




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